Categoria: Pontos de Vista
Publicado em 31 jul 2018
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As contratações públicas mudaram. Se até pouco tempo atrás o modelo contratual público-privado caracterizava-se por sua verticalidade e impositividade, com o Poder Público decidindo sozinho e sem qualquer participação do mercado as condições de contratação, cada vez mais tem sido reconhecida, no mercado e
Tal cenário é notado, principalmente, nos contratos que envolvem a prestação de serviços públicos.
Embora a possibilidade de apresentação de contribuições (estudos, projetos etc.) departiculares à Administração Pública exista pelo menos desde 1995 (nos termos do artigo 21, da Lei de Concessões – Lei Federal nº 8.987/95), foisomente a partir de 2015que o mecanismo se difundiu na cultura da administração pública.
Em 02.04.2015, o Governo Federal expediu o Decreto Federal nº 8.428/15, que estabeleceu o Procedimento de Manifestação de Interesse – PMI a ser observado na apresentação de projetos privados com a finalidade de colaborar com a Administração Pública na estruturação de concessões de serviço público (sejam elas comuns, patrocinadas ou administrativas).
A partir de então, diversos Estados e Municípios, acompanhando a “onda” inaugurada pelo Governo Federal, passaram a disciplinar seus próprios procedimentos internos para o recebimento de projetos de concessões. É fato que, desde a promulgação da Lei Federal nº 11.079/2004 (Lei de Parcerias Público-Privadas), vários entes federados já permitiam a apresentação de projetos pela iniciativa privada;porémseu foco era, de regra, restrito apenas às parcerias público-privadas (concessões patrocinadas e administrativas). Com a porta aberta pelo Decreto Federal nº 8.428/2015, um mundo de novas possibilidades se abriu para a Administração Pública.
A título de exemplificação, cite-se o Estado de São Paulo. Em 21.07.2015, o Governo do Estado reestruturou seu procedimento de PMI, uniformizando o tratamento dispensado aos projetos de concessões comuns e de parcerias público-privadas. O procedimento de PMI paulista é praticamente todo ele digital: os documentos apresentados pelos interessados são submetidos por meio da inovadora “Plataforma Digital de Parcerias”. Além da agilidade que tal plataforma proporciona, a sua adoção permite uma maior transparência na condução dos procedimentos, condição necessária para a credibilidade do programa e para a atuação dos órgãos e pessoas encarregados do controle interno, externo e social.
Ainda para ficarmos no exemplo paulista, segundo dados da própria Secretaria Executiva do Programa de Desestatização [ver], 10 (dez) propostas privadas haviam sido recebidas até março de 2017 pelo Governo, o que demonstra o sucesso de tais procedimentos.
O movimento de abertura ao mercado para a estruturação de projetos relacionados a serviços públicos decorre, de um lado, da constatação das limitações materiais e humanas da administração pública para modelagem de projetos cada vez mais complexos e, de outro lado, do reconhecimento de que,para a construção de um contrato de concessão sustentável e atraente do ponto de vista econômico, é imprescindível que o Governo dialogue com o setor interessado na concessão, traduzindo as suas reivindicações legítimas em projetos equilibrados e sustentáveis.
Ao abrir um canal direto e legítimo de interlocução com o mercado privado, a administração pública beneficia-se duplamente: colhe a “temperatura” dos anseios do mercado em relação ao projeto, com a saudável amplificação das oportunidades de negócio associadas à concessão, e utiliza-se da agilidade do setor privado para acessar projetos cujo desenvolvimento levaria muito mais tempo se gestados exclusivamente pelo aparato estatal.
Esse diálogo público-privado só tende a trazer benefícios a ambos os lados. Especificamente no setor de transportes, pesquisa apresentada em maio/2017 no âmbito da NTU já apontou como alguns dos principais problemas do setor (i) a falta de recursos orçamentários para investimento em infraestrutura urbana, (ii) a precariedade na modelagem dos contratos do setor, e (iii) a irracionalidade na definição de tarifas. É inviável que o Poder Público estabeleça inúmeras melhorias no serviço (ar-condicionado, wi-fi embarcado etc.), preveja cada vez mais novos benefícios tarifários, e mantenha o mesmo “modelo contratual” adotado hávárias décadas. Como se costuma dizer: “a conta não fecha.”
Sem compreender as demandas dos operadores e investidores, é muito difícil chegar-se a uma solução efetiva. Mais ainda: é o diálogo e a construção conjunta de soluções para tais problemas que fará com que os projetos – naturalmente de longo prazo – sejam atrativos do ponto de vista do investidor e do operador e, ao mesmo tempo, eficientes do ponto de vista do Poder Público.
Modelos contratuais precários, mal estruturados ou erroneamente regulados originam o que atualmente vemos ocorrer em diversas capitais e grande cidades do País, onde o Poder Público é obrigado a injetar milhões de reais no sistema a título de subsídio tarifário apenas para manter um serviço de baixa qualidade operando, ou o usuário é penalizado com a redução da qualidade dos serviços. Não é incomum, aliás, que ambas as situações negativas ocorram simultaneamente.
Isso porque a mera operação do serviço de ônibus coletivo — primeira imagem que se forma quando pensamos em concessões de transporte — se torna cada vez mais deficitária, em face das exigências de modicidade tarifária e da ampliação desmedida de gratuidades. A solução? A adoção pela Administração Pública de modelagens contratuais arrojadas e modernas, devidamente discutidas com o mercado por meio dos mecanismos legalmente permitidos — o que, muitas vezes, passa por um longo processo de convencimento (tanto dos agentes públicos quanto dos agentes privados).
Nesse processo, a PMI se mostra uma importante ferramenta da Administração Pública. Afinal, esse instrumento permite que o mercado privado possa desenvolver as soluções técnicas, econômico-financeiras e jurídicas para um projeto e apresentá-las para a administração pública. Por meio da apresentação de estudos técnicos, econômicos e jurídicos gestados pelo mercado privado, é possível adotar modelos que permitam que as concessões de transportes se tornem mais autofinanciadas, viabilizando tanto uma remuneração justa às concessionárias quanto as melhorias progressivas na qualidade da prestação dos serviços.
Nessa linha, modelagens mais inovadoras podem ser elaboradas. Por exemplo: (i) a concessão conjunta dos serviços de transporte e de mobiliário urbano, com a possibilidade de sua exploração para fins publicitários como forma de incremento da receita da concessão; (ii) a concessão conjunta dos serviços de transporte e de terminais de passageiros, com a possibilidade de sua exploração comercial, inclusive por meio da construção de shoppings centers, prédios comerciais e residenciais, em sua estrutura; (iii) a concessão de exploração de namingrightsde terminais ou de outros bens públicos; e (iv) enfim, qualquer projeto associado à concessão que, por ser potencialmente superavitário, possa suportar (ainda que parcialmente) o déficit crônico dos sistemas de transporte.
Além disso, não nos esqueçamos do principal em qualquer contratação pública: segurança jurídica. A Administração Pública somente vai conseguir atrair particulares sérios e comprometidos com a realização dos investimentos necessários à prestação de um bom serviço se puder oferecer (a) regras editalícias e contratuais claras, com justa alocação de riscos entre as partes; (b) um marco regulatório que estimule a racionalização do sistema e a busca de eficiência por parte do concessionário; (c) garantias em favor dos concessionários, não apenas nas PPPs mas também nas concessões comuns; (d) mecanismos ágeis, rápidos e desburocratizados para o trâmite administrativo de pleitos de reequilíbrio econômico-financeiro dos contratos; e (e) mecanismos alternativos para a resolução de conflitos decorrentes dos contratos, em especial a arbitragem.
Tais soluções dependem, essencialmente, de boa vontade do gestor público. Aos poucos, já é possível sentir os primeiros sinais de real interesse em se experimentar o PMI no transporte público e na mobilidade urbana.Pela nossa experiência, o mercado já compreendeu a importância de tais aspectos e está disposto a colaborar com o interesse público na formulação de projetos cada vez melhores.
Ivan Lima é sócio do Cordeiro, Lima e Advogados e mestrando em Direito Público pela FGV. Amauri Feres Saad é sócio do Cordeiro, Lima e Advogados, mestre e doutor em Direito Administrativo pela PUC/SP.