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A mobilidade urbana no pós-pandemia: algumas reflexões jurídicas. Por Leonardo Cordeiro e Ivan Lima, sócios de Cordeiro, Lima Advogados, Brasil

Categoria: Matérias

Publicado em 15 ago 2020

7 minutos

A mobilidade urbana no pós-pandemia: algumas reflexões jurídicas. Por Leonardo Cordeiro e Ivan Lima, sócios de Cordeiro, Lima Advogados, Brasil

O ano de 2020, nascido repleto de esperança e expectativa, revelou-se, logo no final do seu primeiro trimestre, um verdadeiro pesadelo. A pandemia causada pelo Coronavírus (Covid-19) veio para bagunçar o mundo todo, jogando a economia numa recessão absolutamente imprevisível e cujas consequências ainda serão sentidas por muito tempo.

A mobilidade urbana sofreu. E continua sofrendo, sangrando nesse período de isolamento social, lockdown das atividades empresariais e atuação vacilante dos Poderes Públicos sobre como gerir o transporte público nesse período.

Vimos de tudo: proibição de circulação; ordens para manutenção da oferta em níveis muito superiores à demanda atual; regras de lotação; alterações de horários. Enfim, medidas desencontradas e tomadas de inopino, casadas com outras tantas que, se não pareciam à primeira vista fazer sentido, provaram-se verdadeiros fracassos como combate à pandemia.

Uma primeira ordem de problemas surgiu de imediato: todo esse desarranjo causado pela pandemia e as atitudes tomadas pelos Poderes Públicos no afã de achatar a curva de contaminação geraram um sem-número de desequilíbrios em sistemas de transporte público, já tão maltratados ao longo dos últimos anos.

Nesse contexto,muitas operações de transporte de passageiros, já deficitárias e que se equilibravam no limite acima do razoável para sobreviver, ruíram de vez. Outras tantas ficaram à beira do colapso, já moribundas e tragicamente afetadas, com chances de sobrevivência próxima a zero.

Duas lições, todavia, mostraram-se claras ao longo desse processo doloroso. A primeira delas está ligada ao fato de que os sistemas que mostram maior capacidade de sobrevivência foram justamente aqueles que receberam injeções de subsídios orçamentários com o objetivo de manter o custeio da operação em momento de descolamento entre oferta e demanda.

Nesses casos, a sensibilidade da administração pública ao argumento de que o transporte coletivo deve necessariamente ser entendido como serviço essencial vinculado à saúde fez total diferença. Afinal, o deslocamento das pessoas na medida de suas necessidades de saúde é essencial à manutenção do bom funcionamento do sistema de saúde em momentos como esse. Profissionais da área de saúde se deslocam massivamente por meio do transporte público. O pessoal relacionado aos serviços acessórios de saúde também. Assim é também com os pacientes e com todos aqueles que precisam, nesse momento, deslocar-se de um ponto a outro para buscar a assistência de saúde necessária.

O fato é que, se o serviço de transporte público é essencial por determinação constitucional, essa sua condição evidenciou-se ainda mais nas circunstâncias da pandemia, jogando luz sobre algo que pareceu estranhamente esquecido por tantos durante os últimos anos.

Boas administrações públicas, compreendendo essa lógica tão evidente, destinaram corretamente recursos públicos para manter o mínimo de equilíbrio entre custo e receita para o funcionamento adequado do sistema de transporte público, tornando viável o acesso dos cidadãos aos serviços de saúde tão essenciais nesse dramático momento de nossa história.

O transporte, portanto, provou sua essencialidade.

Duvida? Imagine, então, sua cidade um ou dois dias sem a circulação de ônibus no contexto atual. Não há transporte privado que dê conta de suportar a demanda, ainda que substancialmente reduzida.

A segunda lição diz com a necessidadede osnovos contratos de mobilidade dimensionarem melhor a alocação do risco de demanda. Afinal, diante da necessidade de controle da oferta pelo Poder Público – como na situação de pandemia –, que se descolou da lei máxima da economia de oferta e demanda, não faz sentido pensar o serviço de transporte com a qualidade, nível de conforto e rotas alocando-se todo o risco de demanda ao concessionário.

Sistemas que modelam a remuneração do concessionário por outros mecanismos (quilômetro rodado, por exemplo) gozaram de uma facilidade muito maior para gestão da crise do que aqueles remunerados pelo método tradicional do passageiro transportado. Afinal, ao controlar totalmente a oferta – e submeter o concessionário aos riscos de operação, como nível de qualidade, por exemplo –, o Poder Concedente conseguiu implementar de maneira muito mais efetiva mecanismos de combate à curva de contaminação, programando o aumento ou redução de frota de acordo com sua política pública do momento.

E essas alterações não afetaram – ou tiveram menor impacto – no equilíbrio econômico-financeiro do contrato, reduzindo significativamente a chance de colapso do sistema.

Todas as medidas tomadas nesse sentido têm amplo respaldo jurídico: afinal, estamos diante e álea extraordinária e – sim – fato do príncipe causador da desordem econômico-financeira da relação.

Dito isso e colocando nosso olhar sob perspectiva, o fato é que a crise causada pela pandemia exigirá um necessário ajuste no custeio do transporte, eliminando gastos que se provaram desnecessários – como a obrigatoriedade do posto de cobrador –, bem como refletirá na dinâmica dos contratos daqui para a frente: o modelo de remuneração, os eventos-gatilho para rediscussão de equilíbrio econômico-financeiro do contrato, a regulação sobre o reequilíbrio do contrato de maneira cautelar, enfim, diversos aspectos que, ao fim, devem gerar um cenário mais propício à segurança jurídica e ao desenvolvimento de mecanismos mais céleres de solução de controvérsias.

A nova realidade que o mundo pós-pandêmico trará mostrará também um cenário bastante desafiador, porque o transporte sofrerá, sem sombra de dúvida, uma queda de demanda. Afinal, além da possibilidade de adoção maciça do modelo de home-office pelas empresas, o desemprego gerado pela crise reduzirá a quantidade de usuários no sistema, ao menos durante o período de recuperação econômica – que ninguém consegue prever quando virá.

E a imposição da nova realidade reforçará ainda mais uma necessidade de se modernizar a relação público-privada dos contratos de concessão: a Lei de Mobilidade Urbana deve ser abraçada de vez, dado que uma queda acentuada de demanda acarretará o aumento exponencial dos custos por passageiro equivalente.

O modelo de remuneração por tarifa pública simplesmente é insustentável, e ficará ainda mais no futuro próximo. O que era, antes, uma necessidade (de se revisitar os contratos para modernizá-los), passará a ser uma obrigação.

A criação de novas fontes de receitas, a alocação de subsídios para custeio do sistema, a racionalização operacional, a maior liberdade ao operador para ajuste de oferta, a priorização de tecnologias de meios de pagamento no transporte e a melhora dos níveis de conforto como forma de atrair o usuário ao transporte público têm que entrar urgentemente na pauta dos gestores públicos, exatamente para evitar que o colapso que se avizinhava ao longo dos últimos anos ganhe tração em função das mudanças sociais conjunturais e comportamentais causadas pela pandemia.

Objetivamente, essa é a oportunidade para aditar-se os contratos públicos para adequá-los à nova realidade, porque (i) haverá a necessidade de se estabelecer mecanismos de reequilibrar os sistemas de transportes; e (ii) a redução da demanda exigirá uma redução de custos do sistema sem necessariamente reduzir-se a qualidade do serviço, porque isso só tenderia a reduzir ainda mais a demanda.

A equação não é simples, mas já vem sendo proposta por nós há tempos. Muitos contratos já foram revistos, remodelados e modernizados com sucesso, tendo se mostrado bastante eficientes no momento de crise extrema como o vivido na pandemia. Mas é preciso mais: o transporte público merece seu lugar de destaque pela sua importância tão evidenciada nessa fase negra da história. Os contratos de concessão que o regem devem, portanto, estar à altura de sua importância e complexidade.

Leonardo Cordeiro é sócio do Cordeiro, Limae Advogados, especialista em Direito Tributário pela PUC-SP, possui LL.M em Direito Societário pelo Insper e é mestrando em Direito dos Negócios pela FGV.

Ivan Lima é sócio do Cordeiro, Lima e Advogados e mestrando em Direito Público pela FGV.

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