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A mais antiga entidade de transporte público – UITP – escolheu o seu congresso mundial em Barcelona, em 4 de junho deste ano, para uma decisão histórica: eleger Renée Amilcar como a primeira mulher a comandar os destinos da veterana organização de 128 anos. Entrevista realizada por Fred Carvalho.

Categoria: Matérias

Publicado em 31 ago 2023

16 minutos

A mais antiga entidade de transporte público – UITP – escolheu o seu congresso mundial em Barcelona, em 4 de junho deste ano, para uma decisão histórica: eleger Renée Amilcar como a primeira mulher a comandar os destinos da veterana organização de 128 anos. Entrevista realizada por Fred Carvalho.

Renée Amilcar

POR FRED CARVALHO

Renée Amilcar, uma engenheira industrial nascida no Haiti, em 1968, com estudos na Politécnica e Universidade Sherbrooke, em Montreal, Canadá, teve seu primeiro emprego na indústria aeronáutica, além de uma breve passagem pela indústria de telecomunicações, pois trabalhou na Nortel.

A sua paixão, no entanto, foi quando conheceu o mundo dos transportes, em 2002, com sua entrada na Sociedade de Transportes de Montreal, como chefe de planejamento e chegou em 2021 a diretora geral. Foi a primeira mulher, também na UITP, em 2017, a ser presidente do comitê técnico de ônibus.

O sucesso de Amilcar vem da transformação que conseguiu no transporte de Montreal, com uma estratégia que permitiu aumentar em 15% a frota de ônibus e também iniciar a eletrificação dos coletivos, visando a uma frota 100% elétrica até 2025.

Com financiamento federal do Banco de Infraestrutura do Canada de US$ 400 milhões serão comprados mais 450 ônibus elétricos. O objetivo é chegar em 2040 com zero emissões.

  • Texto publicado originalmente na revista Technibus

TECHNIBUS – Se no século passado a preocupação era estabelecer sistemas de transporte que permitissem a circulação de pessoas dentro das crescentes megalópoles – ou seja, havia a necessidade de estruturar corredores que tornassem as viagens pelas cidades cada vez mais rápidas e confortáveis ​​– a atual preocupação é atender a uma série de novas demandas – veículos de transporte com redução substancial na emissão de poluentes, maior automação do sistema de transporte, viabilidade de suportar os crescentes custos de investimento, definições das melhores estratégias para atender o crescente número de passageiros. Como enfrentar esses novos desafios?

RENÉE AMILCAR – A colaboração seria minha primeira resposta. E investimentos seria a segunda. Existem várias maneiras de olhar para isso. Primeiro precisamos que os profissionais do setor de transporte público continuem compartilhando ideias e colaborando nas soluções propostas. Temos que trabalhar juntos mais do que antes, pois isso não é bom apenas para encontrar soluções compartilhadas. É bom para as pessoas verem que os que estão dentro do setor estão trabalhando duro para abrir um caminho a seguir. Um grande exemplo que gostaria de destacar é a colaboração da OC Transpo com a TCC. A colaboração pode fornecer respostas aos nossos desafios, e podemos superá-los trabalhando juntos.

Em seguida, precisamos garantir que defendemos continuamente o transporte público a cada passo, e uma das coisas mais especiais sobre a UITP é a capacidade da associação de reunir todas as partes interessadas do setor. A UITP é uma ótima organização que fornece as ferramentas para possibilitar a colaboração de todo o trabalho. Sabemos que problemas compartilhados podem se tornar soluções compartilhadas. Também sabemos que o que pode funcionar para uma cidade não funcionará necessariamente para outra, e é por isso que exemplos de boas práticas podem resultar em progressão em todos os setores. Se soubermos o que pode ser feito em uma cidade, em uma rede, as lições podem ser aprendidas.

O setor de transporte público não é o único que enfrenta problemas que afetam muitas outras partes da sociedade: mudança climática, inflação, escassez de mão de obra, crise de energia…Esses são grandes problemas e precisamos garantir que o transporte público esteja em alta na agenda dos tomadores de decisão para nos permitir enfrentar essas questões. O transporte público é uma solução importante para a crise climática em termos do que pode fazer por nossas cidades. Sabemos que a mobilidade compartilhada e ativa reduz as emissões, proporciona um ar mais limpo e diminui o congestionamento na vida urbana. Mas se os tomadores de decisão não investirem mais e fornecerem mais financiamento, não poderemos resolver tudo o que precisamos. O transporte público vai prosperar, e fará isso com colaboração e incentivo político.

TECHNIBUS – O usuário do transporte público também mudou muito nos últimos anos. Agora ele quer Wi-Fi, ar-condicionado, suspensão mais suave, maior conforto durante a viagem, mensagens alternativas – principalmente nos horários de pico – que permitam que ele seja direcionado para pegar outra linha do sistema de transporte que o levará mais rápido ao destino. As empresas que operam o transporte de passageiros estão preparadas para este desafio? Como repassar os custos aos usuários?

RENÉE AMILCAR – O transporte público se desenvolveu muito nos últimos dez, 15 anos. Você está absolutamente correto nessa afirmação. O setor tem trabalhado arduamente para se adaptar, melhorar e desenvolver para atender às necessidades de uma sociedade em mudança e para se ajustar aos novos avanços tecnológicos. Para muitos passageiros, sua rede local não se trata apenas de ir do ponto A ao ponto B. Trata-se de oferecer várias opções de mobilidade, com o transporte de massa continuando a ser a espinha dorsal da mobilidade urbana.

O setor passou por uma revolução digital nos últimos anos, e esses desenvolvimentos ocorreram para melhorar as opções para o passageiro. Sabemos que quando os passageiros nos dizem por que não usam sua rede local, ou como acham que sua rede local poderia melhorar, eles nos dizem que desejam serviços pontuais, confiáveis, limpos, seguros…e redes e operadoras trabalham duro para garantir que seus serviços forneçam tudo isso.

TECHNIBUS – Em países pobres ou em desenvolvimento, o transporte público é mais voltado para levar passageiros de um ponto a outro, sem grandes preocupações com a qualidade ou humanização do transporte. Você acha que existem alternativas ao transporte humano em vez do simples transporte urbano (pessoas apinhadas, falta de conforto, tarifas altas, longas horas no ônibus)?

RENÉE AMILCAR – O transporte público deve ser a primeira e mais óbvia escolha para o deslocamento de pessoas em nossas cidades. Quanto mais pessoas encorajarmos a usar o transporte público, menos carros circulam e, principalmente, menos carros para uma única viagem, para uma única pessoa. Para mim, o transporte público é um serviço centrado nas pessoas. E com isso me refiro às pessoas que o usam e às pessoas que trabalham nele. São as pessoas que fazem do transporte público o que ele é.

Obviamente, o acesso ao transporte público e a disponibilidade de transporte público podem variar de acordo com a cidade e o país, e é por isso que o financiamento e os incentivos financeiros são tão importantes. Todos nós devemos ter o direito de acessar opções de mobilidade urbana sustentável. O transporte público dá uma contribuição incrível para a sociedade, oferece às pessoas acesso ao trabalho, à educação, à saúde, ao lazer… e sabemos que também contribui muito para o desenvolvimento das cidades e dos países, principalmente dos países mais pobres. É por isso que precisamos garantir que o investimento esteja sempre presente e que, coletivamente, defendamos todo o setor – em todo o mundo. Precisamos uns dos outros desta forma! Para mim, não há alternativa a uma rede de transporte público acessível e bem administrada, pois é a melhor opção para nossas cidades.

TECHNIBUS – Quais são as cidades do mundo que merecem destaque como as melhores em qualidade de transporte?

RENÉE AMILCAR – Se der uma visão mais específica sobre o Canadá, há um grande desenvolvimento do transporte de massa em Ottawa, Toronto, Quebec, Gatineau e muito mais, e acho que esses desenvolvimentos são definitivamente algo a destacar. Estamos trabalhando duro em Ottawa para continuar expandindo e desenvolvendo o trânsito, e sei, observando nossas cidades e áreas no Canadá e conversando com meus colegas, que temos muito progresso para ficarmos orgulhosos.

Embora o setor tenha enfrentado grandes dificuldades nos últimos anos, existe um compromisso de prestação de serviços que é motivo de orgulho em todo o mundo. Isso torna um pouco difícil selecionar certas cidades, pois existem muitas realizações bem-feitas. Há sempre a preocupação de nomear um, e esquecer outro local que mereça destaque! É verdade que em alguns países e em alguns continentes, certas modalidades ou desenvolvimentos particulares no setor tiveram mais sucesso, mas é por isso que devo voltar à grande capacidade da UITP de reunir tantos operadores, redes e autoridades para compartilhar seus sucessos e suas experiências. Isso nos permite ver o que está funcionando tão bem em lugares específicos e quais exemplos podem ser compartilhados para talvez ajudar outras cidades a desenvolver suas próprias redes.

TECHNIBUS – No Brasil quais são as cidades que se destacam em relação a isso?

RENÉE AMILCAR – Uma das grandes alegrias da minha gestão será a oportunidade de conhecer mais membros da UITP de quantas cidades e países eu puder. Trabalhando todos os dias para promover a mobilidade urbana em Ottawa, estou sempre interessada em saber mais sobre o que está acontecendo em outros lugares e tenho acompanhado o trabalho de nossos colegas no Brasil e no México em nossos escritórios locais. Espero ter a chance de ver mais o que as cidades brasileiras estão fazendo quando se trata de mobilidade urbana e aprender o que está dando certo e onde – tenho certeza que seus sucessos não faltam!

TECHNIBUS – Como evoluiu o transporte público nas últimas décadas?

RENÉE AMILCAR – O transporte público evoluiu a um ritmo impressionante nos últimos anos e décadas. Assistimos a grandes avanços tecnológicos, desde sistemas de bilhetagem inteligente e Mobility-as-a-Service, até desenvolvimentos com dados e segurança cibernética. O setor tem respondido às necessidades de uma sociedade em mudança. Todos esses desenvolvimentos devem existir para beneficiar o passageiro; as necessidades do usuário devem estar sempre na vanguarda de toda e qualquer mudança.

TECHNIBUS – Quais são as maiores dificuldades para a próxima década?

RENÉE AMILCAR – As dificuldades enfrentadas pelo transporte público são aquelas que mencionei em outra parte da entrevista – e só podem ser abordadas em conjunto. Estamos enfrentando problemas de financiamento, estamos lidando com questões globais que estão impactando a sociedade em geral. Seja a gravidade das mudanças climáticas, clima extremo, crise energética, escassez de mão de obra, financiamento e financiamento, não vou fingir que não temos grandes obstáculos a enfrentar. No entanto, o que pude testemunhar no último UITP Global Summit, como nova presidente, é a capacidade do nosso setor de enfrentar esses desafios de frente. Além disso, o grande entusiasmo e atitude colaborativa daqueles que trabalham duro todos os dias para manter nossas cidades em movimento. A pandemia trouxe grande desgaste ao nosso setor, que, como serviço essencial, intensificou a movimentação todos os dias, e ainda estamos nos recuperando disso. Mas sei que o que quer que enfrentemos como setor.

TECHNIBUS – Cresce a necessidade de investimentos em novas tecnologias – ônibus movidos a bateria, hidrogênio, gás e biogás, ônibus com direção autônoma, corredores dedicados, eletrônica e informática facilitando a vida dos usuários, etc. Como conseguir recursos para tantos investimentos em dezenas de cidades pelo mundo?

RENÉE AMILCAR – Financiamento é uma questão importante que o transporte público está enfrentando. Na verdade, estou interessada em fazer deste um dos meus focos como presidente da UITP. Sei da importância do engajamento com os tomadores de decisão para que o setor receba o incentivo político e financeiro e os investimentos necessários. Isso nem sempre é fácil, pois o setor nem sempre aparece no topo da lista quando o assunto é atenção política. Engajamento, engajamento, engajamento – devemos continuar defendendo o financiamento e a discussão com os tomadores de decisão. Se quisermos continuar desenvolvendo a mobilidade urbana – e nunca devemos esquecer que isso é para beneficiar a vida da cidade e da sociedade como um todo – então o setor precisa de financiamento adequado. Não terei vergonha de defender isso e fazê-lo nas várias plataformas que tenho a honra de conduzir.

TECHNIBUS – A questão das emissões de carbono é atualmente o foco principal nas conversas com os governos. Quais são as alternativas tecnológicas mais viáveis ​​para os próximos anos? Gás, elétrico, célula de combustível, combustíveis renováveis?

RENÉE AMILCAR – Sabemos que existem grandes problemas para nossas cidades quando se trata de emissões. Também sabemos que o transporte público é uma importante solução para a crise climática. A movimentação de pessoas em transporte coletivo reduz as emissões coletivas e traz um ar mais limpo para nossas cidades. Mas meu ponto anterior sobre o envolvimento com os tomadores de decisão sobre financiamento também se aplica aqui quando se trata de ação climática. O transporte público pode oferecer soluções para reduzir as emissões, mas isso requer incentivo e engajamento político. Existem muitas alternativas viáveis, e temos visto grandes avanços tecnológicos quando se trata de modos movidos a energias renováveis, ônibus elétricos e movidos a célula de combustível, por exemplo.

A OC Transpo está adotando os contratos da Toronto Transit Commission para adquirir 194 ônibus elétricos de 40 pés (12 metros). De acordo com o plano atual, 26 e-ônibus devem chegar no ano de 2024, 77 chegarão no ano de 2025 e os restantes no ano de 2026. Além disso, nos anos de 2026 e 2027, cerca de 154 ônibus elétricos de alta capacidade serão adquiridos. Até 2027, um total de 350 ônibus elétricos serão adquiridos. Toda a frota da OC Transpo será convertida até 2036.

TECHNIBUS – Qual foi o motivo da mudança no calendário dos congressos da UITP – passa a ser anual, com um evento europeu (anos ímpares) e outro em alguma outra região do mundo (anos pares)?

RENÉE AMILCAR – O objetivo de mudar o UITP Global Summit para uma edição anual (a edição de 2023 em Barcelona foi a última edição sob o formato atual de sediar o Summit uma vez a cada dois anos em uma cidade diferente), foi para melhor definir o Summit para nossos membros, o setor e nossa equipe. O Summit tornou-se o evento definidor do nosso setor e a principal ocasião para reunir toda a indústria. Este é um grande crédito para o excelente trabalho da UITP e de nossos membros. O que aconteceu nos últimos anos é que as formas como nos encontramos e interagimos mudaram, e o mundo está refletindo sobre o que isso significa nos tempos que virão.

Como a única associação do nosso tipo, é importante que a UITP reconheça essas mudanças futuras para nossos membros, funcionários e todo o setor de transporte público. Ao mudar o Summit para uma edição anual, acreditamos que reorientar nossas atividades trará um melhor equilíbrio à nossa abordagem de colocar as pessoas em primeiro lugar. Após conversas e consultas com os membros, decidimos reunir o setor de forma mais regular, tornando o Summit um encontro anual. À medida que nosso setor se reconstrói nos próximos tempos, estamos aumentando a interação, os serviços e o envolvimento de nossos membros. Sob a nova abordagem, o Summit será sediado duas vezes na mesma cidade na Europa – em 2025 e 2027 esta cidade será Hamburgo, na Alemanha – e então, para cada ano par, será sediado em uma cidade fora da Europa. Para 2026, será Dubai, nos Emirados Árabes Unidos. Ambas são cidades incrivelmente empolgantes com muito a oferecer quando se trata de transporte público. O setor de transporte público realmente tem algo a esperar para as próximas edições!

TECHNIBUS – A UITP fez pesquisas para descobrir se os patrocinadores, assim como os participantes, apoiam os eventos anuais?

RENÉE AMILCAR – A mudança para um encontro anual foi um longo processo de discussão e engajamento com nossa equipe, membros e o Conselho Executivo da UITP. Como o UITP Summit existe em vários formatos desde 1886, era muito importante garantir que qualquer mudança fosse cuidadosamente considerada. Apoio foi dado para esta nova abordagem em cada etapa, e acreditamos que esta direção se encaixa bem em nossa abordagem para construir laços mais fortes com cada cidade anfitriã e para melhor definir a estrutura do Summit, aproximando nossos membros e delegados uns dos outros. É uma abordagem emocionante e tenho certeza de que nosso público está envolvido e animado com o que está por vir. São as pessoas que fazem do transporte público o que ele é, e o Summit continuará sendo o lugar ideal para nos conectarmos uns com os outros para considerar o futuro do nosso setor. A colaboração é fundamental em tudo isso!

TECHNIBUS – Quais são as chances de um destes eventos vir para a América Latina? E para o Brasil?

RENÉE AMILCAR – O processo para se tornar o anfitrião/parceiro local do UITP Summit começa com a fase de licitação, que está aberta a membros do UITP em todo o mundo. É incrivelmente empolgante saber que muitas cidades internacionais abrigaram o setor de transporte público ao longo dos anos e considerar as muitas cidades globais que se candidatarão a se tornar as anfitriãs nos próximos anos!

Eu adoraria que o Summit acontecesse em todas as partes do mundo nos próximos anos, e a América Latina tem muitas cidades maravilhosas com sistemas de transporte empolgantes. Como o processo de licitação está aberto a nossos membros em todo o mundo, encorajo qualquer um que deseje licitar a considerar se essa opção é uma que gostariam de seguir!

TECHNIBUS – A repetição da mesma cidade – como no caso de Hamburgo – como sede já foi tentada?

RENÉE AMILCAR – Como o UITP Summit existe desde 1886, houve muitas ocasiões maravilhosas em que uma cidade sediou o evento mais de uma vez. Isso aconteceu em várias ocasiões e sob o novo formato anual haverá uma cidade anfitriã diferente entre cada cidade europeia que acolhe duas vezes. Portanto, em 2025, começaremos em Hamburgo, e Dubai sediará em 2026, antes que o evento retorne a Hamburgo em 2027. O processo começará para uma cidade anfitriã em 2028 e, em seguida, uma cidade europeia para os anos seguintes. Vai ser muito interessante, e acho maravilhoso reunir o setor dessa forma – só a UITP é capaz disso.

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