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A indevida interferência do poder judiciário nas concessões de reajustes tarifários em serviços de transporte público coletivo. Por Ivan Lima, sócio do escritório Cordeiro, Lima e Advogados, Brasil.

Categoria: Matérias

Publicado em 7 mar 2019

9 minutos

A indevida interferência do poder judiciário nas concessões de reajustes tarifários em serviços de transporte público coletivo. Por Ivan Lima, sócio do escritório Cordeiro, Lima e Advogados, Brasil.

Ivan Lima é sócio do Cordeiro, Lima e Advogados e mestrando em Direito Público pela FGV.

Os tempos mudaram para os serviços de transporte público coletivo de passageiros. Os serviços se sofisticaram, as relações contratuais com o Administração Pública ficaram mais hígidas, o arcabouço legislativo se transformou – trazendo muito mais regulação ao setor –, as formas de cálculo dos reajustes tarifários evoluíram. Mas toda essa mudança parece não ter sido ainda percebida pelo Poder Judiciário.

Atualmente,  – e infelizmente, diga-se –, os procedimentos de viabilização dos reajustes tarifários praticados pelo Poder Concedente sempre envolvem uma análise sobre a interferência do Poder Judiciário naquela medida de reajuste. O risco da concessão de uma liminar suspendendo o ato de reajustar a tarifa é tão iminente que justifica a colocação de cenários nos procedimentos de reajuste sobre como sanar os efeitos deletérios da concessão de uma medida de urgência suspendendo eventual reajuste tarifário. E a conclusão é, em regra, a de que haverá a necessidade de aporte de recursos públicos através de indenizações ao concessionário ou a aplicação imediata de subsídios orçamentários.

Nos últimos anos, esse fenômeno da suspensão liminar do reajuste tarifário concedido ocorreu em grandes Estados  e Municípios, tais como o Estado de São Paulo em 2017, nos serviços de transporte coletivo da Região Metropolitana sobre trilhos e pneus; no Município de São Paulo em 2018; nos Municípios de Guarulhos/SP e Cotia/SP em 2017; no Município de João Pessoa/PB em 2017; no Município de Belo Horizonte em 2017 e em tantos outros Estados e Municípios em todo o País nos anos de 2017 e 2018.

Como dito, não é um fenômeno novo. A questão da interferência do Judiciário nos atos de concessão de reajustes tarifários é algo que remonta a décadas. Entretanto, os argumentos jurídicos para tentativa de reforma dessas decisões desde aquela época têm, em muitos casos, sido o mesmo. Basicamente, estamos diante da violação à separação dos poderes, ao sistema denominado “freios e contrapesos” (separação das funções estatais).

Sob essa tese legítima, diga-se de passagem, tenta-se demonstrar ao Poder Judiciário que aquela decisão judicial não poderia interferir num ato administrativo praticado pelo Poder Executivo. Entretanto, a discussão dessa questão eminentemente jurídica poucas vezes tem tido eficácia como fundamento para que o Poder Judiciário recue do seu afã de interferir diretamente nos atos do Poder Executivo que determinam o reajuste das tarifas públicas.

 As decisões judiciais, em regra, direta ou indiretamente questionam os critérios pelos quais a tarifa foi concedida, muitas vezes se limitando a dizer que pelo simples fato de que tenham sido concedidas acima da inflação acumulada seria o suficiente para que fossem suspensas e discutidas por período indeterminado (diz-se indeterminado, pois são incalculáveis os prazos em que se findam processos judiciais dessa natureza).

Por esse motivo, já que a discussão judicial do tema é inevitável (não se pode impedir que qualquer cidadão recorra ao Poder Judiciário), e já que o Poder Judiciário reconhece a tese abstrata da violação à Separação dos Poderes sem qualquer critério e em violação à segurança jurídica dos contratos (ainda que isso seja inconstitucional, repita-se), mais do lutar contra essa força, é necessário que haja uma adaptação a ela, de tal forma a tornar mais controlável esse risco de suspensão dos reajustes tarifários contratualmente previstos.

Se as decisões judiciais se concentram nos fatos (reajuste acima da inflação, por exemplo), e não numa potencial violação a direito concreto, é importante que as defesas judiciais se concentrem em demonstrar ao Poder Judiciário a higidez com as quais a relação entre o Poder Concedente e a Concessionária são construídas.

Como dito no início desse artigo, a situação jurídica dos contratos evoluiu muito de duas décadas para hoje e, infelizmente, o Poder Judiciário ainda analisa os fatos diante da percepção das relações precárias de outrora.

Daí a necessidade de que as defesas judiciais também evoluam, de tal forma a demonstrar ao Poder Judiciário que essa relação se alterou.

Atualmente existem duas legislações relevantes para o setor que, somadas aos contratos de parceria (concessão) firmados, permitem demonstrar ao Poder judiciário que, na tentativa de defender os interesses da população e dos usuários ao conceder liminares de suspensão de reajustes tarifários, em verdade e em última análise, essas decisões prejudicam – e muito – esse interesse social.

Para se comprovar essa alegação, é importante que os responsáveis jurídicos pelas defesas e recursos estejam acompanhados pelos técnicos responsáveis pelo cotidiano da operação e, principalmente, pelos economistas que entendam o processo econômico de cálculo desse reajuste tarifário.

A partir desse suporte técnico, a defesa jurídica deve fazer menção expressa aos termos da Lei Federal nº 8.987/1995 (Lei das Concessões), particularmente nos dispositivos que tratam da necessidade de manutenção do equilíbrio econômico dos contratos, mas especialmente e principalmente fazer menção à Lei Setorial que rege as relações dos serviços públicos de transporte coletivo, que é a Lei Federal nº 12.587/2012 (Lei da Mobilidade Urbana).

Especialmente no que tange a essa lei, é importante uma abordagem especial sobre o funcionamento da cobrança de tarifas, particularmente a diferença conceitual entre tarifa de remuneração e tarifa pública.

A tarifa de remuneração, nos termos da Lei da Mobilidade Urbana, é donde se extrai o que se denomina de preço contratual. Ou seja, é a denominação que se dá para definir o quanto de remuneração o contratado fará jus ao longo da execução de seu contrato de contrato de concessão, para que possa cumprir todas as obrigações assumidas no empreendimento, mais a sua remuneração (nesse caso seus dividendos, seus resultados)[1].

Por outro lado, a Lei de Mobilidade Urbana traz a hipótese de que o valor monetário a ser cobrado do usuário seja igual ou diferente do valor monetário calculado para a Tarifa de Remuneração, e para essa tarifa cobrada do usuário a lei chama de Tarifa Pública.

O entendimento do Poder Judiciário sobre essa diferença é fundamental para que na sequência possa se abordar o conteúdo que compõe o cálculo da Tarifa de Remuneração.

E o cálculo da Tarifa de Remuneração é constituído, nos termos da Lei da Mobilidade Urbana, pelo preço público cobrado do usuário pelos serviços (tarifa pública) somado à receita oriunda de outras fontes de custeio, de forma a cobrir os reais custos do serviço prestado ao usuário por operador público ou privado, além da remuneração do prestador.

Para a elaboração desse cálculo e, posteriormente, para a concessão dos reajustes tarifários, os técnicos envolvidos devem seguir um rigoroso procedimento contratual.

Daí que qualquer interferência do Poder Judiciário nos reajustes tarifários leva a duas consequências drásticas possíveis: a) o desequilíbrio econômico-financeiro dos contratos e a perda imediata da capacidade de investimento da concessionária ou, em casos extremos, da capacidade de custeio da sua operação, na hipótese em que o Poder Público não estabeleça o subsídio orçamentário imediato; ou então, b) na hipótese de que se estabeleça o subsídio orçamentário, há uma interferência imediata na capacidade de investimento ou mesmo de custeio das contas públicas do Município/Estado envolvido.

Há, ainda, um reflexo prejudicial do orçamento público, na medida em que o Poder Concedente deverá se valer de créditos orçamentários suplementares, já que naturalmente esses valores não teriam sido previstos na Lei Orçamentária Anual (LOA).

Daí se concluir que a concessão de uma suspensão liminar judicial sobre reajustes tarifários prejudica muito mais a população como um todo do que a sua não suspensão.

Ainda que, hipoteticamente, o processo judicial (sem a concessão da liminar) venha a constatar posteriormente que houve de fato um excesso na concessão do reajuste pelo Poder Público, esse excesso tem tratamento legal pela Lei de Mobilidade, que o denomina de superávit tarifário e, nesse caso, a lei estabelece que esse valor monetário a maior deve ser revertido em investimentos para a Mobilidade Urbana daquele Município/Estado, como a construção de terminais e pontos de parada, ou mesmo refletir num percentual menor de reajuste tarifário no próximo ano.

Fato é, por esses motivos, a concessão da suspensão liminar do reajuste tarifário nunca é o melhor caminho.

E, na hipótese de que ocorra, mais do que o Poder Concedente e as concessionárias se limitarem ao argumento jurídico da separação dos poderes, é importante que todos os envolvidos na elaboração da defesa estejam atentos a demonstrar ao Poder Judiciário que as relações se sofisticaram e que é importante que o Poder Judiciário tenha ciência disso.

As ferramentas estão às nossas mãos, precisamos utilizá-las com maestria, sempre em prol da manutenção da prestação dos bons serviços aos usuários e isso só se dá com contratos economicamente estáveis. [1]


[1] Esclareça-se que antes da vigência da Lei da Mobilidade Urbana a Tarifa de Remuneração era tratada no setor comumente como “Tarifa Técnica”.

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