Categoria: Matérias
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Publicado em 3 fev 2019
8 minutos
A Lei Geral de Concessões data de 1995. Já passou por algumas atualizações, é verdade, mas seu cerne está lá, estabelecido há mais de 20 anos. Em um período razoavelmente longo de existência, essa legislação já foi submetida ao escrutínio de doutrinadores, julgadores de todas as instâncias, administradores públicos e advogados, dado que todos os contratos de concessão comum cuja delegação do serviço tenha se dado após o início de sua vigência se subordinam a ela.
Naturalmente, todo esse escrutínio não foi capaz de esgotar as discussões em torno das concessões comuns. E, sinceramente, não há análise suficientemente extensa que consiga criar “verdades absolutas” sobre uma legislação tão complexa quanto essa, dado que a lei, como elemento de regulação de condutas, sempre deve ser (re)interpretada a partir da realidade posta, ou, em outros termos, diante das novas situações que surgem e cujo amoldamento à lei necessita de interpretação.
Ainda que assim seja – e é difícil negar a evolução da interpretação da lei a partir das novas situações de fato que são a ela submetidas –, algumas práticas aplicadas em contratos de concessões comuns se estabeleceram no tempo como “verdades” jurídicas absolutas, sem se submeterem a questionamento ou a uma outra forma de pensar, mesmo diante de situações jurídicas novas. Aplique-se uma prática constantemente, como se ela fosse uma regra imutável (e não uma mera opção administrativa) e isso a tornará um verdadeiro dogma.
Quandose fala em concessão de garantias por parte do Poder Concedente ao concessionário, em contratos de concessão comum, parece estarmos diante de uma dessas “verdades absolutas”. A resposta mais comum é de que não cabe garantia por parte do Poder Concedente em concessão comum. Garantia é coisa de Parceria Público-Privada contratada na forma da Lei de PPPs (Lei nº 11.079/04), diriam respeitabilíssimos doutrinadores.
De fato, a previsão de garantias a serem outorgadas pelo Poder Concedente ao concessionário é incomum. Mas incomum não quer dizer impossível.
E aí vem a prática forçando uma sobreposição à lógica: normalmente, não se vê, em contratos de concessão, garantias por parte do Poder Concedente. Logo, conclui-se, é porque não pode. Será?
Na realidade, a própria Lei Geral de Concessões prevê a possibilidade de o Poder Concedente outorgar garantias, especificamente em seu artigo 23, V. O que se vê é que, a partir da lógica de que a concessão comum é remunerada por tarifa pública, ou seja, aquela paga diretamente pelo usuário do serviço público, a garantia por parte do Poder Concedente sempre foi desnecessária. No caso do transporte de passageiros, essa situação gera uma circunstância economicamente importante: não há risco de crédito com o usuário, porque a tarifa é sempre paga antes do uso do serviço.
Logo, num cenário onde a remuneração decorre exclusivamente do usuário, sem que seja necessário nenhum aporte do Poder Concedente, não há risco financeiro relacionado à capacidade de pagamento do ente delegante.
Essa desnecessidade, portanto, não pode ser confundida com impossibilidade. Ao contrário: a garantia por parte do Poder Concedente nas concessões comuns sempre foi possível, mas comumente inaplicável.
No caso do transporte público de passageiros por ônibus, a realidade da remuneração do concessionário exclusivamente por tarifas públicas (ou receitas acessórias cujo pagamento não se dê pelo Poder Concedente) está largamente superada. Hoje, ao invés de regra, essa é a exceção. Afinal, o serviço de transporte ganhou em complexidade: integrações intra e intermodais, novas demandas por gratuidades, investimentos em tecnologias de pagamento, enfim, os custos foram se avolumando e tornando inviável a modicidade tarifária.
Com essa complexidade, vários entes delegantes passaram a subsidiar diretamente o serviço, como uma forma de viabilizar a não-transferência desses custos para a tarifa pública. O aumento imoderado da tarifa pública, longe de ser apenas um aspecto a ser considerado no cálculo político, causa um efeito deletério para todo o sistema de transporte público: a migração do usuário para o transporte privado. Daí a necessidade cada vez mais comum de o Poder Concedente assumir parte dessa conta via orçamento público.
Perceba-se que, nesse novo cenário, entra no jogo um risco que não fazia parte do arranjo original: agora, o concessionário se submete ao risco de “calote” do Poder Concedente. Esse risco não lhe era conhecido e, definitivamente, não foi assumido no momento da contratação.
Em 2012, surgea Lei de Mobilidade Urbana, que segrega os conceitos de tarifa pública e a tarifa de remuneração como dois elementos distintos. Tarifa pública é aquela definida pelo Poder Concedente como o preço público a ser cobrado do usuário. A tarifa de remuneração é aquela que remunera o serviço de transporte. Sempre que houver déficit tarifário (ou seja, quando a tarifa pública for menor que a tarifa de remuneração, o que é a regra na prática), essa diferença deve ser coberta por outras fontes alternativas, entre elas o subsídio orçamentário.
Com um novo desenho jurídico a ser aplicado às concessões públicas, e diante da necessidade premente de se adequar os contratos de concessão tanto em relação às exigências da Lei de Mobilidade Urbana quanto à nova configuração do transporte público no Brasil, surge a questão fundamental aqui tratada: se o Poder Concedente, agora, é (ou pode vir a ser) responsável pelo pagamento da remuneração do operador, caberia falar em oferecimento de garantia quanto ao risco de eventual default do ente delegante?
E a resposta tem que ser positiva. Afinal, se a Lei Geral de Concessões sempre permitiu que tal garantia fosse oferecida, e havendo a criação de um risco de pagamento não previsto originariamente no arranjo contratual, é juridicamente requerido que o concessionário seja garantido por essa alteração relevante de sua matriz de risco. Ora, uma coisa é depender exclusivamente do pagamento do usuário (antecipado, sobretudo);outra, completamente diferente, é contar com o pagamento pontual do Poder Concedente (sempre realizado a posteriori da prestação do serviço). É claro que, nesse caso, a exposição do concessionário aumenta.
Se a garantia ao concessionário é juridicamente cabível – e, diríamos, até exigível quando há inserção desse novo risco nos contratos em curso –, é altamente recomendável que ela seja adotada como regra pelas administrações públicas.
Nas situações em que o serviço será licitado, é bastantesalutar (embora não exigível) que o Poder Concedente oferte garantia sobre a parcela da remuneração que será paga ao futuro concessionário diretamente pelo erário. A existência de garantias hígidas certamente gerará um significativo aumento de atratividade do projeto, melhorando a competitividade do processo licitatório e, consequentemente, o recebimento de melhores propostas para o Poder Concedente.
Já nos contratos em curso que não preveem originalmente remuneração paga pelo Poder Concedente, a alteração da forma de remuneração que implique a criação de um novo risco para o concessionário deve necessariamente ser acompanhada da oferta de garantia. Do contrário, teríamos a alteração significativa das condições de contratação em prejuízo do concessionário, que, como já dissemos antes, não assumiu esse risco.
Há diversas garantias eficientes que podem ser adotadas pelo Poder Concedente como forma de assegurar o recebimento, pelo concessionário, de sua remuneração. Naturalmente, pode-se adotar o mesmo rol de garantias previsto na Lei de PPPs, sem a ele ater-se, contudo.
Um excelente modelo é de conceder em garantia as parcelas detidas pelo ente delegante nos fundos públicos federais de participação (Fundo de Participação dos Municípios ou dos Estados). Essa modalidade de garantia já foi utilizada em PPPs e foi muito bem-sucedida. Outras formas, contudo, são possíveis, inclusive soluções intracontratuais, em que mecanismos internos do serviço servem à formação de garantia ao concessionário, sem necessariamente onerar ativos ou receita do ente delegante.
Enfim, são diversas as formas e modalidades que o Poder Concedente pode adotar para oferecer garantia ao concessionário quando há exposição ao risco de default por parte do ente delegante nas concessões comuns. O importante é ter em mente que esse risco, cada vez mais presente nas concessões comuns, tem solução. Basta ampliar os horizontes e adequar a interpretação da legislação à realidade atual do transporte de passageiros.
Leonardo Cordeiro é sócio do Cordeiro, Lima e Advogados, especialista em Direito Tributário pela PUC-SP, ex-professor de planejamento tributário e possui LL.M em Direito Societário pelo Insper.
Ivan Lima é sócio do Cordeiro, Lima e Advogados e mestrando em Direito Público pela FGV.
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