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“O ônibus vive uma tragédia, mas há perspectivas”. Uma entrevista com Claudio de Senna Frederico, engenheiro e consultor internacional, que comandou importantes sistemas de transporte de massa no Brasil.

Categoria: Matérias

Publicado em 9 mar 2022

28 minutos

“O ônibus vive uma tragédia, mas há perspectivas”. Uma entrevista com Claudio de Senna Frederico, engenheiro e consultor internacional, que comandou importantes sistemas de transporte de massa no Brasil.

Cláudio de Senna Frederico

ALEXANDRE ASQUINI

O engenheiro e consultor internacional Claudio de Senna Frederico estruturou a operação do Metrô de São Paulo nos anos 1970, foi diretor de operações do Metrô do Rio de Janeiro e secretário de Transportes Metropolitanos do Estado de São Paulo no fim dos anos 1990.É consultor internacional para projetos de transporte público, incluindo sistemas de Bus Rapid Transit (BRT). E também se preocupa com a qualificação do ônibus para que assuma um novo status e um novo papel no transporte urbano e metropolitano, contribuindo com ideias e ações. É vice-presidente da Associação Nacional de Transportes Públicos (ANTP), do Brasil, engajando-se nas ações dessa entidade junto com organizações nacionais do setor, visando a um novo modelo de transporte público por ônibus no país.  (Este texto foi publicado originalmente n0  Anuário do Ônibus e da Mobilidade Urbana 2021, da OTM Editora).

ANUÁRIO – Desde muito antes da pandemia da Covid-19, os sistemas de ônibus já enfrentavam no Brasil uma crise pronunciada e prolongada. Quais são as principais características desta crise?

CLÁUDIO FREDERICO – Eu acho que a principal característica é a seguinte: o ônibus foi se enfraquecendo como opção. O sistema foi perdendo a demanda, não porque as pessoas se locomoviam menos, mas porque as pessoas preferiram se locomover de outra forma. Como acontece com um produto qualquer, significaria dizer que o ônibus foi perdendo competitividade. Ou desejabilidade. Foi uma crise de perda de demanda. Ao mesmo tempo, e isso é inevitável, com a diminuição da cotação pelo consumidor, o apoio público foi caindo também. Para minorar o problema, o setor de ônibus pleiteou melhorias, como a ideia das faixas exclusivas etc., para poder aumentar a velocidade. Para isso, o poder público precisaria botar dinheiro e o poder público não se via interessado em investir numa coisa que não era popular. Ou seja, há uma grande diferença entre as pessoas necessitarem e as pessoas desejarem o transporte público. As coisas que as pessoas desejam, o governante, o político, procura fazer. Considerando aquela célebre expressão, que eu, aliás, detesto, “vontade política”, digo que a “vontade política” sempre existe, o que pode acontecer é ela não coincidir com a sua vontade. O governante pode não estar com vontade de fazer o que você precisa, porque o que você precisa não traz benefícios políticos para ele. Não estou falando sobre má administração, estou falando sobre um fato objetivo da política. A democracia é um processo em que o governante é impelido pela vontade popular. Se a vontade popular precisa daquilo, mas não gosta, o valor político daquilo vai caindo. Então, as principais características da crise foram estas: a perda de competitividade e perda da relação afetiva com os consumidores e, consequentemente, perda do desejo dos políticos de apoiar o ônibus. O metrô, que é um transporte público, não sofreu esse problema. Mas por quê? Porque ele já partiu em um campo virgem, com um produto completamente novo que, desde o princípio, procurou e obteve o apoio político para isso, obteve os recursos necessários e aplicou bem esses recursos para ser do agrado do consumidor. Consequentemente, o consumidor está sempre pedindo: “Quero mais metrô!”, “Quero mais linhas!”. Então, mais ou menos, as grandes características da crise do ônibus foram a perda do poder de atrair o seu público e a perda da condição de manter o apoio político necessário. 

ANUÁRIO – Quando a crise começou a se configurar?

CLÁUDIO FREDERICO – Bom, eu acho que a crise do transporte público na rua começou a partir da popularização e da priorização do transporte individual. Ali, os ovos da serpente já foram colocados e começaram a ser chocados. Os próprios ônibus de certo modo ficaram felizes quando os bondes foram banidos. Mas isso foi um erro, porque aquilo ali já anunciava o que viria a ocorrer com os ônibus. A natureza da troca não estava em que os bondes não eram um bom transporte público e os ônibus eram um bom transporte público. Os bondes foram tirados porque os carros queriam o espaço dos bondes. E isso gerou o ovo da serpente no futuro para os ônibus. Aí, o próximo passo surgiu nos investimentos em vias expressar urbanas, como o Aterro do Flamengo, no Rio de Janeiro, e avenida Rubem Berta, em São Paulo. Era inclusive comum que estas vias alijassem o transporte público, para não atrapalhar a fluidez do trânsito.

ANUÁRIO – Mais algum fator interferiu nesse quadro?

CLÁUDIO FREDERICO –Sim, começou também outro processo, que era a demonização dos subsídios. Ou seja, até mais ou menos 1960, 1970, o subsídio não era demonizado. O subsídio era considerado mais ou menos inevitável. Os trens de subúrbio eram subsidiados. Os bondes eram subsidiados depois de estatizados. Não tinha esse demônio. Aí virou um demônio que era: “Subsidio significa ineficiência”, “Subsídio significa má operação”. E então, junto com a demonização, veio a cortina de fumaça de que o automóvel não tinha subsídio. Aquilo que as pessoas queriam proteger, fingiam que não existia. O carro não tinha subsídio e não quiseram mais ouvir falar nesse assunto. Aí se implantou a ideia da autonomia do transporte público. O transporte público tinha que ser autônomo, a tarifa deveria cobrir o seu custo, e tudo isso era possível, sim. Se não era possível é porque ele estava sendo mal administrado ou porque precisava aumentar a tarifa. Nos anos 1990, começa a perda de passageiros, realmente visível, nítida. E uma vez que se determinou que o ônibus fosse remunerado só pela tarifa, o deus passou a ser o IPK (Índice de Passageiros por Quilômetro). Ou seja, se não tiver o IPK suficiente, aquele transporte vai morrer. Começou também a produção por veículo: “Quantos passageiros eu transporto por veículo operante por dia?”. Porém, tudo isso vai despencando ao longo dos anos 1990. E isso era meramente consequência do que foi estabelecido como modelo. A solução que todo mundo buscava nessa época era o aumento das tarifas. As tarifas subiram violentamente não por causa do custo; na verdade, o custo estava subindo também, astronomicamente, devido ao fracasso do transporte público. Não era meramente assim: “O diesel estava subindo”, não. Não era isso. O fato é que o número de passageiros por ônibus, por dia, estava despencando.

ANUÁRIO – E a eficiência do transporte público no meio do congestionamento?

CLÁUDIO FREDERICO – Uma coisa foi se somando à outra, mas a solução, a única coisa que tinha ainda certa possibilidade era o cara do ônibus ir lá, se ajoelhar e pedir para o governante: “Me dá uma tarifazinha a mais aí”. E essa tarifa piorava a situação dele em relação ao consumidor dele, que também fugia. Ou seja, agravou o abandono. E a justificativa para a solução única do aumento das tarifas dava para o governante também uma ideia tranquilizadora: “Bem, já dei a tarifa”, ficando implícito um “Agora, vire-se!”. E ainda: “Não preciso me preocupar com o espaço no trânsito, não preciso me preocupar com isso ou com aquilo, pois já dei a tarifa. É isso aí! Não encha o saco”.Eu diria que esta é a grande história, a grande tragédia do transporte público, principalmente do transporte público sobre pneus, que está na rua, que compete por espaço na cidade.

ANUÁRIO – O tema da tarifa, então, é central.

CLÁUDIO FREDERICO – Exato. E tem outra coisa que é o fato de, num dado momento, ter surgido uma ideia considerada maravilhosa: a tarifa única. Bom, a tarifa única com subsídio é uma coisa e pode funcionar até muito bem, mas com a tarifa única sem subsídio, gradativamente, alijou-se uma parte da demanda: as pessoas que precisam fazer alguma coisa em um lugar não suficientemente distante para valer a pena pagar a tarifa cheia. Hoje, de modo geral, a tarifa única tem que cobrir o custo todo, em linhas que não se renovam, forçando uma tarifa muito alta para quem, no fundo, gostaria de andar curto. Aí, surgem os clandestinos, surge o moto-táxi, surge a Kombi que anda dentro da favela. Por quê? Porque o sistema de transporte público não está adequado a todas as demandas. O sistema de preços do transporte público não está adequado. Se houvesse um subsídio radical, em que todo mundo pagasse R$ 1,00, o transporte público não precisaria ter uma tarifa para distância curta. Mas quando se cobra uma tarifa de R$ 5,00, é preciso ter outra, de dois R$ 2,00, para trajetos mais curtos. E aí a gente cruza com a tecnologia. Isso era mais complicado antigamente, embora já tenha existido. Quando eu era criança, conheci o sistema do Rio de Janeiro com tarifas por seções e não havia tecnologia. Com tecnologia isso é totalmente viável. Um dos também deflagradores daquela crise de perda de demanda foi esse sistema tarifário com o estabelecimento do preço rígido da tarifa única. Todo mundo aceitou porque “as pessoas mais pobres moram mais longe”. Mas, e as pessoas mais pobres que moram mais perto? E as pessoas mais pobres que moram mais longe, mas querem ir a um lugar perto de onde elas moram? Então, de certo modo, o que se fez foi o que nenhum homem de negócios faria: pegar uma parte do seu mercado e jogar fora.

ANUÁRIO – O senhor mencionou as tecnologias aplicadas ao transporte público. Como elas entraram em cena?

CLÁUDIO FREDERICO – A tecnologia que foi mais rapidamente absorvida no Brasil foi a da bilhetagem. Enquanto o Metrô de São Paulo, em 1972, já estava comprando e implantando sistemas que hoje seriam chamados de ITS [sigla em inglês que designa Sistemas Inteligentes de Transporte], somente no fim dos anos 1990, mais para o início do século 21, os ônibus implantavam quase que exclusivamente a bilhetagem. Porque a bilhetagem atingia o coração da operação, que era o bolso. Ou seja, a bilhetagem trazia menor fraude e um controle maior da arrecadação. Então, ali, foi definida, corretamente, a prioridade número um para tecnologias. Por determinação de técnicos públicos, em boa medida influenciados pelo metrô, houve uma série de investimentos também na implantação de centros de controle, embora o setor estivesse muito pouco preparado para utilizar esses recursos de modo a melhorar a eficiência do sistema. A finalidade não era melhorar a operação, mas, sim, fiscalizar se o que foi contratado estava sendo cumprido. Então, as tecnologias, inicialmente, não foram em alguma medida bem aplicadas.

ANUÁRIO – E hoje?

CLÁUDIO FREDERICO – Atualmente, as tecnologias são muito melhores e elas têm um papel muito importante para o futuro. As tecnologias têm um papel fundamental que é melhorar a previsibilidade da operação, a utilização dos recursos – estou me referindo à frota, às pessoas e tudo mais. E tem também outra finalidade que é manter o público mais bem informado a respeito do que está acontecendo, manter um fluxo de comunicação com o público, mas esta parte está muito fraca, ainda. Para mostrar isso, vou dar um exemplo: se alguém quiser chamar um Uber, entrará em um aplicativo, dirá o que quer, escolherá uma das opções, terá uma previsão de quando vai chegar. O motorista sabe para onde o passageiro vai. E o passageiro pode registrar no aplicativo se na viagem tudo correu tudo bem ou não. Além disso, o passageiro ainda pode pagar por meio desse aplicativo. E eu pergunto: existe em algum lugar um ônibus que ofereça essas mesmas condições?  Não! Eu vou dizer uma coisa mais simples ainda: se alguém estiver num ponto de ônibus e quiser que o ônibus da linha 322 pare, como fará? Ele vai para o ponto certo, e esse ponto certo é ele que decide com base nas informações de que dispõe.Então, fará o quê?  Ficará vigiando os ônibus. Ficará olhando a rua e pensando: “Cadê ele? Cadê ele?”. Quando vier um ônibus, precisará ver se é o 322. E, aí, irá agitar o braço, irá torcer para o motorista do ônibus ter visto o seu braço e irá torcer para o motorista querer parar ou conseguir parar para, então, embarcar no ônibus. Assim, tem muita coisa ainda que a tecnologia poderá melhorar, e muito, em relação ao que hoje se chama experiência do usuário.

ANUÁRIO – Nesse contexto, qual tem sido o trabalho da Associação Nacional de Transportes Públicos (ANTP), entidade da qual o senhor é vice-presidente?

CLÁUDIO FREDERICO – Bom, no fundo, o que é a ANTP? Ela é uma tentativa de fazer uma transfusão de sangue da experiência bem-sucedida do Metrô de São Paulo não só para outros sistemas ferroviários e metroviários, mas também para dirigentes, técnicos, políticos etc. Em sua origem, em 1977, seu propósito era, de certo modo, difundir e promover a troca das experiências oriundas da única coisa realmente diferente que tinha sido feita, que era o Metrô de São Paulo. A ANTP tem feito um esforço muito grande, por exemplo, com as publicações dela, como o livro Transporte Urbano para uma Cidade Humana. Esta publicação procura demonstrar que é possível ter um transporte público desejável e, portanto, com poder político. Em sua trajetória, a ANTP atuou muito no apoio ao Bilhete Único, à implantação do vale-transporte, à mudança e aprimoramento da legislação do trânsito. E trabalhou na organização dos Fóruns de Secretários (secretários municipais de mobilidade urbana). Os Fóruns de Secretários constituem uma tentativa também de fortalecer o lado político da questão, quer dizer, melhorar aquele negócio chamado vontade política; e se já existir a vontade política, instrumentá-la para obter o necessário. A ANTP também apoiou as leis que configuraram o arcabouço do planejamento urbano de mobilidade, como o Estatuto da Cidade, que regulamentou o Plano Diretor, e a Lei de Mobilidade Urbana, que estabelece a necessidade de as cidades com mais de 20 mil habitantes terem um Plano de Mobilidade Urbana. Mais recentemente, nos últimos anos, a ANTP vem fazendo esforços junto com entidades como a Associação Nacional das Empresas de Transporte Urbano (NTU), as federações de transporte e tambémentidades representativas da indústria de veículos para, por assim dizer, azeitar a ação política da área. Ou seja, fazer alguma coisa parecida com o que o automóvel fez muito habilmente. A ANTP está buscando corrigir o curso do transporte público e demonstrar que o transporte público é um instrumento para que se tenha uma vida e uma cidade melhores, mais saudáveis, mais equânimes e mais equilibradas.

ANUÁRIO – Na busca dessa correção de curso, como o senhor vê o quadro atual?

CLÁUDIO FREDERICO – No momento, há uma confusão muito grande entre proposta emergencial e estrutural para fortalecer o transporte público. Estamos em uma emergência extrema e a analogia que eu uso é de uma pessoa se afogando na frente de todo mundo. Essa pessoa é o transporte público. Diante disso, muitas vezes apontam ou querem discutir soluções que não cabem para a situação: “Aquele cara está se afogando, então, o que eu acho que deve ser feito? Eu acho que ele deve começar a fazer um curso de natação”. Esta é uma solução de maturação lenta e não atende à necessidade de uma pessoa que esteja se afogando. A solução emergencial seria o auxílio que foi aprovado pelo Congresso e depois foi vetado. Não há solução melhor para uma pessoa que esteja se afogando do que retirá-la da água. Então, a ANTP hoje, por uma questão de realismo, está extremamente dedicada a procurar ajudar, dar informações necessárias e comunicar, junto com as pessoas que estão se afogando, que elas estão se afogando, e que, portanto, esse problema emergencial tem que ser resolvido. Isso significa separar o que é emergencial do que é estrutural. O que é estrutural dá tempo ainda para discutir, mas o emergencial tem que ser resolvido já.

ANUÁRIO – E quanto ao estrutural?

CLÁUDIO FREDERICO – A ANTP também está atuando no estrutural porque não dá para ficar esperando que o cara seja salvo para que depois ele tenha uma nova crise. Por exemplo, criamos o ANTP Café (um programa virtual mensal com participação de prefeitos), uma iniciativa para divulgar e debater as dificuldades dos prefeitos e mostrar o que pensam sobre elas. Porque uma coisa que aconteceu e que foi um subproduto positivo de uma situação negativa é que, nessa brincadeira toda, o que antes era só preocupação do operador de ônibus passou também a ser uma preocupação do prefeito.

ANUÁRIO – O que mais atravessa o drama do transporte público por ônibus nas cidades brasileiras?

CLÁUDIO FREDERICO – O transporte público é essencial, mas o que não fica claro é o seguinte: quem é o detentor da responsabilidade de o transporte público ser essencial? A responsabilidade é do poder público. O poder público usa bastante a argumentação de que o operador do sistema é que tem a obrigação pela essencialidade. Mas não é isso. Quem tem a obrigação de fornecer a essencialidade do transporte público é a mesma instância que tem a responsabilidade de fornecer a saúde, a segurança, a educação e outras coisas essenciais, ou seja, é o poder público. Agora, o poder público pode fornecer o transporte público de forma direta ou indireta. Quando é indireta, ele contrata alguém para fazer. Ele diz para a empresa como ela vai fazer. Ele diz quanto a empresa vai cobrar e se esse valor não for suficiente, é um problema dele, poder público,não um problema de quem foi contratado. A essencialidade é uma das coisas curiosas, que tem sido muito atribuída ao operador do sistema de ônibus, mas não deveria ser. O transporte público é essencial e precisa ser de qualidade. Ótimo! Quem tem que prover a qualidade? É quem tem a atribuição de separar o espaço viário, quem tem o poder de construir uma pista especial, quem especifica o tipo de ônibus a ser usado, ou seja, novamente, o poder público. E, além disso, o poder público tem que arrumar um jeito de a empresa contratada ser remunerada de uma forma que ela possa prestar adequadamente o serviço de transporte.

ANUÁRIO – Ao poder público cabe o planejamento do serviço.

CLÁUDIO FREDERICO – Isso é importante porque o bom atendimento está ligado à forma de desenhar o sistema. Um exemplo: é preciso haver determinadas linhas que tenham como finalidade capturar aquele passageiro que precisa se deslocar a curta distância. Outro exemplo: um dos problemas de uma pessoa aqui na periferia é ir fazer compra na feira, ou ir a um supermercado grande, em que os preços são mais baixos, e depois levar aquilo tudo para casa. Como ele faz isso utilizando o transporte público? Ele leva a família inteira, gasta uma nota para cada um carregar um pouco. Ou seja, nós não temos hoje linhas especializadas específicas para a população mais pobre. Precisa existir. “Mas isso aí fica muito caro.” Então, precisa arrumar um subsídio para que isso exista.

ANUÁRIO – O subsídio é crucial para essa equação.

CLÁUDIO FREDERICO – Sim. É o ponto fundamental. Ou seja, o sistema de ônibus não pode mais ser contratado por IPK ou por arrecadação; ele tem que ser contratado pela prestação do serviço, feito o metrô. E tem que ter subsídio. Mas esses meios de subsídio não devem ser apenas orçamentários. Os subsídios orçamentários podem entrar na parte de investimento e coisas assim, mas não no custeio. Isso porque o subsídio orçamentário tem um sério problema, que é a tendência de ser esquecido. Ou seja, ser “economizado”. Assim, o governante diz: “Todo mundo está com a melhor intenção, mas, agora, estamos apertados, não vai ter como dar o subsídio”, então, corta daqui, corta dali, e começa a deterioração.  A deterioração leva à perda do apoio do consumidor, a perda do apoio do consumidor leva à perda da vontade política e assim vai. Precisamos começar a discutir outras formas de subsídios.

ANUÁRIO – Qual o caminho?

CLÁUDIO FREDERICO – Um exemplo é o chamado pedágio urbano, ou pedágio de congestionamento, ou a cobrança pela via, ou o nome que se queira dar, mas o fato é o seguinte: é preciso conseguir compensação por meio de recursos que saiam de quem usa o transporte individual e vá para o transporte coletivo. Não tem jeito! Mais cedo ou mais tarde isso vai ter que ser enfrentado. Não é popular? Não, não é popular para quem tem carro, mas é popular, ou deveria ser, para quem não tem carro. Precisa também haver uma compensação por parte do transporte por aplicativos. E, talvez,a substituição do vale-transporte por um sistema mais eficiente – um imposto, uma taxa, uma contribuição. O fato é o seguinte: precisa haver fontes de receitas estáveis, que vão para um fundo, e esse fundo deve cobrir a diferença entre quanto as pessoas podem pagar e quanto custa um bom transporte. Todo mundo que viaja para o exterior volta elogiando o transporte público, mas todos os transportes públicos que eles elogiam são subsidiados. E ninguém fala sobre esse assunto aqui. É um assunto feio.

ANUÁRIO – O que mais pode ser feito para favorecer o ônibus como meio de transporte público e, consequentemente,favorecer o usuário do ônibus?

CLÁUDIO FREDERICO – O transporte público tem que invadir a praia dos aplicativos e dos transportes individuais. Não pode ficar também apenas restrito a funcionar numa rede de rota fixa e em horário predeterminado. O transporte público tem que introduzir a condição que os outros têm que é funcionar por demanda. Os ônibus têm que ter rotas variáveis, tem que ter veículos flexíveis, em que em certos dias se utiliza um veículo de um tamanho e em outros se emprega um veículo de outro tamanho. E o transporte público tem que ficar interligado a sistemas de pagamento em que ele recebe tanto o subsídio quanto o valor básico do pagamento de quem utiliza o serviço – sistemas que são chamados de MaaS, ou Mobility as a Service. Ou seja, as pessoas contratam o serviço e pagam por intermédio de um único meio. Só que, hoje em dia, o MaaS é muito ligado a meios de pagamento; eu acho que tem que ir mais longe do que isso. O MaaS deve ser uma forma de empacotar recursos de mobilidade; alguns desses recursos vão ser necessariamente subsidiados e outros não, funcionando de acordo com o mercado.

ANUÁRIO – No início dos anos 2000, no âmbito da ANTP, o senhor atuou em um projeto de BRT denominado Transporte Expresso Urbano (TEU). Como foi essa experiência?

CLÁUDIO FREDERICO – O TEU botou na mesa a discussão de um transporte urbano, um BRT pleno, em São Paulo, e que tinha a finalidade não só de transporte, mas também de desenvolvimento e de melhoria das condições de uma área deprimida e vazia, que era uma parte da região leste da cidade. O TEU foi um exercício. Claro que eu gostaria que fosse implantado integralmente, mas isso não aconteceu. Ainda hoje estão implantando uns pedaços dele, mas o fato é o seguinte: o TEU, mais do que ser feito ou não ser feito, abriu a discussão de uma saída, ou seja, a possibilidade de uma cidade do tamanho de São Paulo enxergar no BRT uma solução semelhante ao que ela enxerga no metrô. Semelhante, mas diferente, pelo seguinte: o metrô é caro demais e tem oferta demais, ou seja, tem capacidade de absorver demanda demais, para ser usado de modo a abrir novas regiões da cidade e desenvolver novos hábitos de transporte. O metrô precisa ter muita demanda; ele faz o estudo de origem e destino e resolve um problema referente a uma grande demanda. Mas, se continuar sempre assim, fazendo só isso, a cidade vai correr atrás das demandas já existentes e das deformações que ela já possui. Se compararmos isso com o projeto de Curitiba, veremos que a capital paranaense teve a chance de se perguntar o seguinte: “Que cidade eu quero ter?”. “Eu quero ter uma cidade assim.” E a pergunta subsequente foi: “E para onde está faltando o transporte para essa cidade – não a cidade de hoje, mas a cidade que eu quero ter?”. O TEU oferece essa flexibilidade. Um sistema tipo BRT pode ser implantado de modo que tenhaum crescimento gradativo sem um investimento tão grande. E pode até virar uma linha de metrô.

ANUÁRIO – Na última década, foram implantados sistemas de BRT no país. Que avaliação se pode fazer dessas iniciativas?

CLÁUDIO FREDERICO – Eu acho que o BRT tem uma série de exemplos muito interessantes no Brasil, mesmo no Rio de Janeiro, que, hoje em dia, está sendo muito usado para criticar esse tipo de sistema. Criticam o Transoeste, mas aquela linha que vai para o aeroporto do Galeão tem muito mais acertos do que erros. De todo modo, acho que o grande problema do BRT é o eterno problema do ônibus. Como disse, o metrô parte como se fosse transporte aéreo. O metrô aproveitou muito dos conceitos de transporte aéreo, inclusive em manutenção. E o metrô pensa de uma forma tão intransigente quanto a aviação: “Para ter um metrô decente, é preciso ter estas coisas”, “Ah! Mas a gente podia…”. “Não, não podia não! Ou o avião está pronto para decolar ou o avião não decola!”. Por outro lado, o ônibus sofre do problema do “puxadinho”. Ou seja, “Poxa, o piso precisa ser de concreto?”. “Precisa.” “Mas, precisa mesmo? Talvez para inaugurar a gente faça um piso de asfalto.” “Precisa de quantos ônibus para ter o carregamento de tantas pessoas?” “Precisa de ‘n’ ônibus.” “Mas não dá para ser a metade? Depois a gente vai botando mais ônibus”, e, de fato, depois, os ônibus não vão ser colocados. No Brasil, toda vez que o BRT não foi o ideal pelo desejo do público, não o foi porque foram feitas aparas, foram feitos “puxadinhos”. Ele não foi bem projetado e não foi bem implantado, ou foi bem projetado, mas o que foi projetado não foi executado e as necessidades foram sendo simplificadas.

ANUÁRIO – O senhor também propôs o Sistema de Ônibus Padrão (SOPA). Como é essa proposta?

CLÁUDIO FREDERICO – O Sistema de Ônibus Padrão tem duas vertentes. Uma dela é tentar fazer com que as qualidades que o ônibus precisa ter – todos os ônibus, não só os sistemas de BRT – sejam facilmente mensuráveis. E, ao mesmo tempo, que isso aconteça dentro de uma linguagem que parta do usuário, do passageiro, e não do técnico, de tal forma que seja aberto um diálogo político, novamente na tentativa de conquistar a vontade política do governante. Um passageiro diz o seguinte: “Eu não quero ficar esperando no ponto de ônibus por horas” e um técnico vai falar em headway. Ora, o passageiro no ponto não sabe qual é o headway, porque só um maluco fica no ponto esperando passar dois ônibus para medir o tempo entre um e outro. Não faz parte da realidade do passageiro. O que ele quer saber é somente o seguinte: “Vou para o ponto e quanto tempo terei de esperar para o ônibus aparecer?”. Headway é o modo como o técnico vai resolver esse problema dele, mas não é assunto para passageiros. Então, o SOPA procura sempre criar uma planilha popular, e não uma planilha técnica. Contudo, por trás de uma planilha popular, deve existir uma planilha técnica, para prover o necessário e dizer o quanto de investimento vai ser preciso para isso. Eu acho que o SOPA poderia voltar a ser a base de uma discussão muito clara, uma discussão política, sobretudo agora que a gente está tendo os prefeitos mais perto e tudo mais. Com isso poderá haver uma especificação popular ou do passageiro e uma especificação técnica para a contratação de um serviço ou fazer uma obra.

ANUÁRIO – Ao comandar na Arena ANTP 2019 (congresso bienal da ANTP) uma sessão sobre transporte elétrico, o senhor falou que a eletrificação poderá ser um caminho para que o ônibus mude de patamar aos olhos da sociedade. Explique esta ideia.

CLÁUDIO FREDERICO – Nos últimos quatro anos, estive muito envolvido com projetos em duas cidades no Paquistão, que estavam implantando sistemas de BRT com ônibus elétrico. O que eu coloquei naquela sessão em 2019 reúne muito do que discutimos nesta entrevista, que são os seguintes pontos: se a gente há alguns anos tivesse um TEU e se esse TEU fosse operado já com uma infraeastrutura com a qualidade de metrô e que, além disso, o ônibus fosse elétrico, isso ajudaria não só o problema do meio ambiente, mas ajudaria a conquistar o passageiro desse transporte. Falo do ônibus elétrico associado a um projeto de BRT principalmente, mais do que o ônibus elétrico meramente trafegando na rua, no congestionamento. O ônibus elétrico em sistema de BRT dá ao sistema de BRT e ao próprio ônibus elétrico outro status, aliando conforto, justificativa ambiental e um produto final bastante diferente do que as pessoas estão acostumadas a observar em produtos centrados no ônibus.  Hoje, quem é contra e critica os sistemas de BRT, um dos pontos que usa para criticar é “Ah! Ele polui”. Bom, se o ônibus for elétrico, ele não poluirá. Outro ponto é: “Ah, deveria ser um VLT (Veículo Leve sobre Trilhos, ou o bonde moderno)”. Mas o VLT tem suas desvantagens, uma das quais é a seguinte: se houver algum problema na via, não é possível contornar, não é possível ultrapassar. O VLT não sai da faixa para retornar a ela mais adiante. Ou seja, a flexibilidade de um veículo rodoviário é uma coisa invejável. Não é um problema, é uma qualidade. Agora os problemas do ônibus são: “É barulhento?”. “É.” “Solta fumaça?.” “Solta.” E se for elétrico? Então, o grande tema naquela sessão era não vender meramente o ônibus elétrico como uma substituição de um ônibus de frota, mas vendê-lo como parte de um projeto de transporte. Ou seja, um BRT, uma rede, algo de qualidade que, além de tudo, opera com ônibus elétricos. Eu vi isso no processo de implantação dos ônibus no Paquistão. Quando as pessoas entram em um ônibus elétrico em um sistema de BRT, observam que não há ruído. O ônibus tem ar-condicionado, a via é lisa. Tem estação, e não um poste no meio da calçada. Este conjunto todo é um bom princípio para o passageiro ter uma experiência com um ônibus com uma qualidade acima do que normalmente ele está acostumado. Mas, ainda assim, será preciso bater no ombro do passageiro e dizer: “Percebeu que você está em um ônibus diferente?”.  Se não, ele mergulha no celular dele e achará que está tudo igual.

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