Categoria: Matérias
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Publicado em 6 ago 2019
8 minutos
Não é segredo que o transporte público coletivo de passageiros, sobretudo aquele prestado nos âmbitos municipal e metropolitano, vem, há muito, sofrendo uma grave crise setorial.
Um dos principais motivos dessa situação é a queda vertiginosa de passageiros pagantes (mais de 18% entre 2013 e 2016, segundo a NTU[1]), resultado da combinação de diversos fatores, tais como:i) aumento exponencial de usuários beneficiados com descontos tarifários integrais ou parciais; ii) ausência de regulamentação adequada de serviços de transporte remunerado privado individual de passageiro; e, sobretudo, iii) a proliferação desenfreada do denominado “transporte clandestino” [2]em cidades de médio e grande porte.
Tal prática, indiscutivelmente ilegal, coloca os operadores clandestino sem injusta situação de privilégio, já que não se submetem a diversas regras aplicadas às legítimas delegatárias de transporte público (concessionárias/permissionárias) e, tampouco, estão sujeitos às usuais multas e demais penalidades mais gravosas.Isso porque muitas dessas condições geram expressivo ônus aos custos e investimentos do serviço (ex.:determinações do Poder Público sobre valor da tarifa, horários e itinerários;exigências acerca de frota, garagem, GPS e Sistema de Bilhetagem Eletrônica; transporte de beneficiados por gratuidades; cumprimento de normas fiscais, trabalhistas e de segurança).
Essa inegável disparidade, por outro lado, propicia aos operadores clandestinos oferecer um valor inferior ao da tarifa pública praticada no serviço público local, o que se torna atraente aos olhos dos cidadãos (passageiros pagantes, destaque-se).
Mesmo sendo um problema da mais alta prioridade para o setor, a coibição dessa atividade tem deixado muito a desejar, seja por falta de ação do Poder Público (a quem exclusivamente cabe a fiscalização), seja pela ausência de instrumentos jurídicos eficazes (dispostos em leis nacionais ou em leis locais).
Acerca deste último item, a recente Lei Federal nº 13.855/19, que alterou osArts. 230, XX (transporte ilegal de escolares) e 231, VII (transporte ilegal de passageiros em geral e bens), do Código de Trânsito Brasileiro – CTB, trouxe adequações que podem contribuir nessa luta. Antes, porém, devem ser explicadas algumas questões importantes sobre legislação de trânsito.
Cada infração prevista no CTB é acompanhada de gradação (gravíssima, grave, média eetc.), para fins de pontuação na CNH e eleição de penalidade;de penalidade em si (multa, cassação da CNH e etc.); epor vezes, de medida administrativa (retenção do veículo, remoção do veículo e etc.).
Nesse contexto, as medidas administrativas[1]mais relevantes são i) retenção do veículo, que é sua imobilização no local da infração até solução da irregularidade (temporária e sem deslocamento do veículo); e ii) remoção do veículo, que visa restabelecer as condições de segurança ou garantir a boa ordem administrativa, com destinação do veículo para depósito adequado(não temporária e com deslocamento do veículo).
Pois bem. Dentre as ferramentas jurídicas existentes em lei nacional, a mais costumeiramente utilizada está prevista no Art. 231, VIII (redação vigente), do Código de Trânsito Brasileiro – CTB, que caracteriza o transporte clandestino como infração média, passível de penalidade de multa e de medida administrativa de retenção do veículo.
Claramente, a gradação da infração e a medida administrativahoje existentescontém um baixíssimo rigor, indevidamentedesproporcional[2]ao risco e gravidade decorrentestransporte clandestino (segurança e vida do passageiros e demais usuários de vias e em torno).
Tanto é verdade que, na prática,constatado o transporte clandestino, lavra-se amulta de valor pouco expressivo e, com o desembarque de todos os passageiros, o veículo já se encontraliberado para circular clandestinamenteoutra vez.
Em outras palavras, a redação vigente do Art. 231, VIII, do CTB não oferece condiçõesefetivas para que as autoridades competentes possam repreender e evitar a reincidência de práticas ilegais.
E mais: abriu uma “brecha” que arrefece ainda mais as possibilidades de efetiva fiscalização do transporte clandestino, pois acabou por tornar inócuos os instrumentos de fiscalização de Estados e Municípios. Esses entes federativos, em especial os Municípios, podem- e devem – editar suas respectivas normas para coibir o transporte clandestino, calcadosno dever constitucional de regulação do serviço de transporte e de fiscalizar e coibir qualquer prática em desacordo com as regras locais.
E, dada a gravidade da prática do transporte clandestino, uma expressiva parcela das legislações locais previa a remoção do veículo nesses casos.
Entretanto, operadores clandestinos passaram a questionar judicialmente a fiscalização de Estados e Municípios alegando que o CTB, que prevê a medida de retenção, deveria prevalecer sobre as legislações locais quando estas impusessem a medida de remoção.
A questão chegou até o STF que, a nosso ver, de maneira equivocada, entendeu sob o regime de repercussão geral (Tema 430)[1] que seria “inconstitucional lei municipal que impõe pena mais grave que o Código de Trânsito.”
Na prática, portanto, Estados e Municípios poderiam apenas reter veículos, e não mais removê-los.
O entendimento judicial da questão criou um verdadeiro salvo-conduto para a prática do transporte clandestino e, pior, acabou por permitir sua execução de forma “institucionalizada”, com a chancela do Poder Judiciário.
Sociedades empresárias, associações e cooperativas supostamente voltadas ao transporte passaram a ingressar com ações judiciais confessando que tiveram veículos de seus “colaboradores” removidos, medida essa que, segundo entendimento do STF, seria inconstitucional. Pleiteavam a liberação dos veículos e, pior ainda, a proibição de que as autoridades locais efetuassem novas remoções.
Os juízes, pautados somente no entendimento do STF, concediam liminares de forma indiscriminada, sem se atentar que o verdadeiro intuito era obter uma decisão judicial para viabilizar o transporte clandestino.
Dessa forma, além da insuficiência dos instrumentos normativos previstos no CTB, a dificuldade em coibir o transporte clandestino se agravou ainda mais em razão do cenário judicial que veio a se consolidar.
Por esses motivos, são bem-vindas as modificações da Lei Federal nº 13.855/19para coibição do transporte clandestino (que entra em vigor 90 dias a contar de 09.07.19).
A nova redação do Art. 230 altera a infração de média para gravíssima – elevando os valoresda multa (de R$ 130,16 para R$ 293,47) e fator de pontuação na CNH(de 4 para 7 pontos)-, e, o mais importante, viabilizaremoção do veículo como medida administrativa.
No mais, poderá o agente competente determinar, após desembarque dos passageiros, o deslocamento do veículo até pátio apropriado, o qual somente será liberado após prévio pagamento de multas, taxas e despesas com remoção e estada (Art. 271, §1º, CTB).
Uma ressalva: para o valor da multa, a Lei poderia ter sido muito mais rígida, estabelecendo agravante que permitisse multiplicar o seu valor. Por exemplo, a mesma Lei Federal nº 13.855/19 instituiu,para a infração de transporte clandestino de escolares (Art. 230, XX), a agravante de 5 vezes o valor da multa de infração gravíssima (R$ 1.467,35).
Naturalmente, para que essa importante ferramenta surta efeitos, é fundamental que o Poder Público local exerça devidamente as funções de fiscalização, incluindo em suas políticas prioritárias suprimir o transporte ilegal, com disponibilização de pessoal e infraestruturas (guincho, pátio etc.) necessários para tanto.
Por fim, reitere-se que essas alterações, que elevaram em alguma medida o rigor contra infratores, não dispensam o Poder Público local de sua obrigação constitucional e legal de criar (Poder Legislativo) e implantar (Poder Executivo) outras medidas de fiscalização eficazes para combate do transporte clandestino.
Referências – [1] Fonte: http://www.ntu.org.br/novo/ListaDadosPorRegiao.aspx?idArea=7&idSegundoNivel=17 Acesso em 23.04.2018. [2] Transporte clandestino, para fins deste texto, é a prestação ilegal do serviço de transporte de passageiro, coletivo ou individual, mediante remuneração, por pessoa física ou jurídica que não detenha a regular outorga de serviço (autorização, permissão ou concessão) emanada do Poder Público competente (União, Estados ou Municípios). [3] Caracterizam-se por: i) serem aplicadas por autoridade de trânsito (dirigente do órgão – ex.: Diretor-presidente do DETRAN) ou seus agentes (pessoas que realizam a fiscalização); ii) não tem caráter punitivo, sendo complementares às infrações; iii) ter como finalidade a regularização de situações infracionais (em regra, são temporárias); e iv) serem impostas no momento em que se constata a infração. [4] Esse motivo consta expressamente da Justificativa do Projeto de Lei que originou a Lei Federal nº 13.855/19. [5] A questão pode ser revista na análise do Tema 546 sob exame de Repercussão Geral.
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