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“Se toda a economia se beneficia do transporte público, por que só o passageiro tem que pagar essa conta?” Entrevista com o consultor internacional brasileiro Sérgio Avelleda, sócio-fundador da empresa de consultoria Urucuia

Categoria: Matérias

Publicado em 15 ago 2023

21 minutos

“Se toda a economia se beneficia do transporte público, por que só o passageiro tem que pagar essa conta?” Entrevista com o consultor internacional brasileiro Sérgio Avelleda, sócio-fundador da empresa de consultoria Urucuia

POR ALEXANDRE ASQUINI

Sérgio Avelleda

Sócio-fundador da empresa de consultoria Urucuia, o curitibano Sérgio Avelleda é advogado com MBA em gestão executiva pela instituição de ensino e pesquisa Insper. Foi presidente das empresas públicas paulistas Companhia do Metropolitano de São Paulo – Metrô e Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM) e secretário de Mobilidade e Transportes da cidade de São Paulo. Atuou como diretor de mobilidade urbana do WRI Ross Center for Sustainable Cities, em Washington, Estados Unidos. Integrou o Conselho de Administração da Partnership on Sustainable, Low Carbon Transport (SLOCAT). É coordenador do Núcleo de Mobilidade Urbana no Laboratório Arq.Futuro de Cidades do Insper e membro da Comissão de Direito Urbanístico da Ordem dos Advogados do Brasil, Secional de São Paulo.

Nesta entrevista – publicada originalmente no Anuário do Ônibus e da Mobilidade Urbana 2023, da OTM Editora, Brasil – ele examina a situação do transporte público neste momento posterior à pandemia, considerando, entre outros, temas como a importância das vias exclusivas para o desempenho dos ônibus urbanos, a questão do financiamento e a relevância dos subsídios e mesmo da tarifa zero para ampliar o acesso da população aos meios adequados de mobilidade.

ANUÁRIO DO ÔNIBUS E DA MOBILIDADE URBANA – No início da pandemia, o senhor fez uma conferência virtual, avaliando o que poderia ocorrer com os sistemas de transporte público urbano a partir daquela situação. Disse que a saída da crise se daria em três etapas. A primeira era a vivida naquele instante – a fase emergencial, já superada. O segundo momento seria de transição, em que a demanda retornaria lentamente, no compasso da retomada da atividade econômica. Considerando a realidade brasileira, é possível dizer que esse estágio de transição já foi vencido?

SÉRGIO AVELLEDA – Entendo que a matriz de viagens ainda esteja se movimentando. A gente ainda não recuperou a demanda do transporte público existente antes da pandemia. Algumas causas podem explicar essa situação. Por exemplo, ainda há a ocorrência do home office, mas eu não acho que essa seja a causa mais importante. A causa mais importante é que, infelizmente, as pessoas migraram para os automóveis tanto durante a pandemia como depois dela, por medo da contaminação. É preciso observar que durante a pandemia o trânsito estava muito bom, mas, agora, começa a piorar bastante. Os indicadores já são muito ruins e iguais aos do período anterior à pandemia. Então, acho que a gente ainda está numa fase de movimentação de demanda. Ela não está consolidada ainda.

ANUÁRIO – Este é um bom momento para desencadear um esforço de fortalecimento do transporte público?

SÉRGIO AVELLEDA – O melhor momento já passou, mas ainda há uma janela de oportunidades para que políticas públicas em favor do transporte público sejam capazes de ampliar a demanda. Durante a pandemia, umas poucas cidades do Brasil e do mundo entenderam que aquele espaço vazio das ruas poderia ser redesenhado em favor da mobilidade ativa e do transporte público. Essa deveria ser a medida a ser adotada por todas as cidades. Redesenhar o uso do espaço, adotando faixas exclusivas e corredores de ônibus em favor do transporte público, melhorando a produtividade e, por consequência, a atratividade do transporte público.

ANUÁRIO – Por que seria melhor adotar essas medidas durante a crise sanitária?

SÉRGIO AVELLEDA – Durante a pandemia, eu estava na WRI e falei várias vezes que aquele era o momento. Porque, nas cidades ainda vazias, a resistência a redesenhar os espaços teria sido muito menor. Porto Alegre é um exemplo. Porto Alegre fez isso, ampliando barbaramente a quantidade de faixas exclusivas de ônibus. Isso é algo que se pode fazer de forma muito rápida, com pouquíssimos recursos, e com um impacto positivo imenso na produtividade dos sistemas de ônibus. Mas, infelizmente, poucas cidades aproveitaram aquela janela. Agora devem fazer, porque é uma medida para recuperar a demanda, para tornar a cidade mais sustentável, mas terão que gerenciar resistências maiores por parte de quem usa o automóvel.

ANUÁRIO – É uma questão de garantir recursos para os sistemas de transporte?

SÉRGIO AVELLEDA – Quando falamos que é necessário recuperar a demanda do transporte público, não se trata de uma questão só de tarifa, de pagamento. É porque, na verdade, efetivamente, precisamos caminhar em direção a uma cidade mais sustentável. Vamos lembrar: o transporte é o maior responsável pela emissão de gases contaminantes nas cidades. Uma pessoa que anda de carro emite 45 vezes mais dióxido de carbono do que uma pessoa que anda de ônibus. Se o prefeito ou a prefeita tem de fato o compromisso de evitar as mudanças climáticas, se defende a sustentabilidade, a política mais simples a adotar é o redesenho do espaço público em favor do transporte público. Mas não é só isso. O transporte público garante acessos muito mais baratos, muito mais eficientes para as pessoas andarem nas cidades. Quanto mais gente andar de transporte público, mais eficiência ele vai ter e mais gente vamos ter dentro dele. E o transporte público é muito mais seguro. Eu não consigo compreender como essa política não é a prioridade máxima dos prefeitos. Alguns dizem: “Ah! É antipático para quem tem carro”. Mas vamos lembrar: quem tem carro é uma minoria. Na matriz de transporte do Brasil, o carro responde por 26% das viagens apenas e consome 75% do petróleo. Então, por todos os ângulos que a gente vê, as cidades, os estados e o governo federal deveriam estar engajados numa pauta para redesenhar o espaço em favor do transporte público, com prioridade e até mesmo de subsídio, para reduzir a tarifa e trazer cada vez mais gente para andar de transporte público. Iniquidade, diante da crise climática e de atratividade do transporte público, é pensar em ampliar avenidas, viadutos e túneis em favor do transporte individual motorizado.

ANUÁRIO – O financiamento do transporte público é uma questão que vem sendo colocada há muito tempo, mas sem uma solução até aqui. Como o senhor vê o encaminhamento desse tema?

SÉRGIO AVELLEDA – O modelo de financiamento do transporte público adotado no Brasil – baseado no custo de produção do serviço rateado entre os usuários – estava mostrando a sua decadência, sua incapacidade de financiar o transporte público antes da pandemia. A gente já vinha numa crise de financiamento antes da pandemia. A pandemia escancarou essa crise. Ela mostrou que o transporte público precisa existir, precisa ser oferecido, mesmo que a gente tenha poucos usuários. Na pandemia, poucas cidades cogitaram parar o transporte público. Se tivessem parado o transporte público, nós teríamos ido para o caos. Eu sempre digo: pude adotar o home office porque tinha comida no supermercado do lado da minha casa. Tinha comida no supermercado do lado da minha casa porque o estoquista ia trabalhar todo dia. E o estoquista só chegava lá porque tinha transporte público. Então, durante a pandemia, a sociedade descobriu algo que nós, da área da mobilidade urbana, já sabíamos: o transporte público é essencial. Não só para quem usa, mas essencial para toda a sociedade. Com transporte público, o banco funciona, a indústria funciona, a padaria funciona. A cidade existe, tem limpeza pública, tem segurança pública, tem médico no hospital, tem enfermeiro, porque quem trabalha nesses setores se move no transporte público. Então, toda a economia se beneficia do transporte público. Ora, se toda a economia se beneficia do transporte público, por que só quem usa é que tem que pagar essa conta? Isso não tem nenhuma lógica!

ANUÁRIO – O senhor está dizendo que o uso do transporte público tem profunda importância social.

SÉRGIO AVELLEDA – Quem usa o transporte público promove o que a gente chama na economia de externalidades positivas. Quem usa o transporte público não beneficia só a si. Ao contrário. Ele promove muito mais benefícios para terceiros. Até mesmo para quem está de carro, porque ele está diminuindo o trânsito na cidade. Portanto, não é justo que só ele pague a conta. É preciso que a sociedade entenda que ela se beneficia do transporte público e que, portanto, através dos impostos, ou com alguma outra fonte, ela deve ajudar a pagar o transporte público. É a mesma lógica que se aplica à saúde pública e à educação pública. Ninguém cogita cobrar mensalidade em escola pública, nem a consulta na Unidade Básica de Saúde, justamente porque, como sociedade, nós atingimos um consenso de que, para todos nós, mesmo para quem tem plano de saúde, mesmo para quem paga médico particular, é bom que a sociedade toda tenha acesso a um sistema gratuito, porque quanto mais saudável for a sociedade, quanto mais produtiva ela for, melhor vamos funcionar como economia. Então, todo mundo, mesmo quem não usa o centro de saúde, se beneficia desse recurso, porque a população ao redor está mais saudável. E a mesma lógica deve ser aplicada ao transporte público. E essa lógica começa a crescer.

ANUÁRIO – Por que a aceitação dessa lógica está se ampliando?

SÉRGIO AVELLEDA – Bem, a Frente Nacional de Prefeitos informa que mais de 260 cidades do Brasil estão pagando subsídios ao transporte público. Ou seja, estão mantendo uma tarifa mais baixa para o usuário. Subsídio, vamos deixar bem claro, não é dinheiro no bolso do empresário do ônibus; subsídio é uma tarifa mais baixa para todo mundo que usa o transporte público. É isso que significa o subsídio. Porque, se o subsídio for retirado, será necessário aumentar a arrecadação, cobrando mais. Então, o subsídio é uma política pública de inclusão social. E algumas cidades já vão mais além. Por exemplo, Paranaguá (PR), Cianorte (PR), Caucaia (CE) e Maricá (RJ) já aplicam a tarifa zero, ou seja, o conceito de que é um serviço público que deve ser universal, deve ser acessível a todos. E, com isto, a economia dessas cidades gira mais, porque não tem mais a despesa de vale-transporte, porque mais gente consegue viajar e ir em busca de empregos, de oportunidades. Ou seja, a economia fica mais azeitada. E outras cidades começam a discutir a tarifa zero. Em São Paulo, a Câmara Municipal, o Tribunal de Contas do Município e a Prefeitura também estão estudando como caminhar rumo a uma tarifa zero. Claro que há desafios, tais como equacionar o financiamento, garantir que o sistema não seja vandalizado, garantir que seja mantido o controle de acesso para que se possa continuar tendo dados para o planejamento. Tem vários desafios, mas é um rumo que nós, como sociedade, devemos almejar, quer dizer, levar o transporte público ao mesmo nível da saúde e da educação em termos de importância e em termos de financiamento.

ANUÁRIO – O tema da tarifa zero não é propriamente novo e uma das críticas que muitos técnicos fazem a ela é que poderá produzir um aumento de demanda.

SÉRGIO AVELLEDA – A demanda vai crescer. E é para crescer. Porque a tarifa é uma barreira de acesso. Muita gente não vai trabalhar e muita gente sequer sai de casa porque não consegue pagar o transporte público. Então, veja, nós estamos negando o direito das pessoas a conviver nas cidades porque elas não têm dinheiro para pagar o transporte público. Claro que a demanda vai crescer. E temos que fazer estudos para adaptar o sistema para receber essa demanda. Quando a gente fala de tarifa zero, nós não podemos estudar o financiamento dos sistemas com os custos atuais. A tendência é de os custos crescerem em termos de maior produção de serviços. Mas é exatamente isso que eu disse na minha primeira resposta desta entrevista: nós precisamos trazer mais gente para o transporte público, se nós quisermos uma cidade sustentável. A demanda vai crescer, mas, em contrapartida, a cidade vai gerar mais riquezas, por exemplo, em turismo e lazer. Em Diadema (SP), no domingo da eleição, com transporte gratuito, o número de passageiros dobrou em relação ao domingo anterior. O que significa isso? Mais gente saiu de casa. Imagina uma família de cinco integrantes, todos pagantes de transporte público, que, num domingo, queira ir ao Parque do Ibirapuera em São Paulo. São dez viagens. Vai custar 44,00 reais (USD 9,28) para eles irem e voltarem. Chegando ao Ibirapuera, vai uma água, vai uma pipoca. Muita gente não pode fazer isso! Muita gente tem o lazer – que é um direito! – negado, porque não pode pagar o transporte público. Então, a demanda vai crescer, mas isso não pode ser visto como um obstáculo intransponível. Isso tem que fazer parte da modelagem. A gente tem que entender que, para aplicar tarifa zero, deveremos estar preparados para melhorar a oferta. E para ampliar a oferta, uma das medidas se relaciona com a minha primeira resposta: vai ser preciso redesenhar. Então, quando um prefeito fala comigo sobre tarifa zero, eu pergunto para ele: “O senhor está preparado?”. Ele me olha com ar de interrogação e eu digo: “Não estou falando de dinheiro, é algo além do dinheiro. O senhor está preparado para priorizar mesmo o ônibus? Para tirar espaço do automóvel e dar mais espaço para o ônibus? Porque o senhor vai precisar fazer isso. A demanda vai crescer”. Então, o compromisso com tarifa zero vai além do financiamento e deve alcançar o compromisso de realmente priorizar o transporte público. Aí demanda é absorvida. Que bom! Como seria bom uma cidade em que a demanda do transporte duplicasse ou triplicasse. É isso que almejamos. Não queremos reduzir demanda no transporte público. Mas isso precisa ser feito com responsabilidade fiscal, com a busca de fontes de financiamento. Não pode ser uma aventura. Não pode ser por meio de uma política populista.

ANUÁRIO – Como o senhor vê a absorção de tecnologias pelos sistemas de transporte público?

SÉRGIO AVELLEDA – Nós andamos a passos muito lentos. É o que eu falo em termos de prioridade para o transporte público. Dotar o transporte público de tecnologia que permita ao usuário gerenciar a sua viagem é essencial. As pessoas têm uma certa resistência… Um dos motivos de resistência em usar o transporte público – especialmente por parte de quem pode não usar, de quem tem dinheiro para ter carro – é a incapacidade de gerenciar a viagem. E isso hoje pode ser resolvido com muita facilidade com o uso da tecnologia. Eu poderia estar aqui na minha casa e ser avisado da hora correta de sair e ir para o ponto para pegar o ônibus. Porque se o ônibus estiver numa faixa exclusiva, ele vai ter muito menos interferências de engarrafamentos, ou seja, as previsões serão muito melhores. Com um sistema de GPS, com um sistema de comunicação muito moderno e eficiente, eu poderei saber exatamente a hora que eu tenho que sair de casa. E isso teria uma atratividade enorme, porque as pessoas já não suportam mais ficar esperando, ficar passivas. Com a internet, o smartphone, as pessoas se tornaram ativas em todos os seus afazeres. Então, você controla o seu banco, você controla o seu e-mail, você controla tudo no seu celular. Você precisa também controlar a sua viagem. Oferecer tecnologia é essencial se a gente quiser atrair mais pessoas para os sistemas de transporte público. A atração passar pela infraestrutura, pela frota, mas também pela tecnologia.

ANUÁRIO – E com relação à eletrificação dos sistemas de ônibus?

SÉRGIO AVELLEDA – O mundo tem caminhado para a solução dos ônibus elétricos a bateria. A China liderou esse processo, a Europa também vem adotando essa alternativa, e na América Latina a gente já tem dois países que são líderes mundiais, depois da China, em eletrificação, que são a Colômbia e o Chile. Aí é preciso entender que é muito difícil a gente escapar dos padrões internacionais. Porque nós, o Brasil, não vamos conseguir continuar tendo uma plataforma exportadora de ônibus se não mantivermos um mercado interno de ônibus. E nós não vamos conseguir exportar ônibus a etanol se o mundo houver adotado o ônibus a bateria. Assim, é muito difícil a gente escapar da onda global, se a gente quiser continuar sendo – e eu acho que é fundamental que a gente continue sendo – uma plataforma exportadora de ônibus. E temos um potencial enorme para o ônibus elétrico, porque a nossa matriz energética é, em sua imensa maioria, uma matriz renovável. Ou seja, o uso de energia elétrica no Brasil é sustentável. Em alguns outros países, não é tanto, mas aqui é. Essa é uma tecnologia que está ficando mais barata, conforme o tempo vai passando. Vai ficando mais eficiente, com mais autonomia. Portanto, me parece que é a solução que caminhará no mundo. Claro que a gente ouve falar do hidrogênio, mas não adianta; se a gente quiser trocar os ônibus hoje – e nós precisamos trocar os ônibus, porque o planeta não aguenta mais; São Paulo perde quatro mil pessoas por ano por doenças respiratórias –, nós precisamos trocar pela tecnologia que existe. Não dá mais para adiar. E a tecnologia que existe, em escala comercial e testada, é o elétrico. Portanto, eu vejo com bons olhos. Agora, é claro que isso tem um desafio enorme de financiamento, de investimento, mas, ao mesmo tempo, ele proporcionará uma redução de custos operacionais. E o mais importante: proporcionará mais conforto ao usuário, em termos de ruído e em termos de suavidade na direção.

ANUÁRIO – Em entrevista neste mesmo espaço do Anuário do Ônibus e da Mobilidade Urbana, o engenheiro Cláudio de Senna Frederico afirmou que a eletrificação dos sistemas pode significar uma possibilidade de requalificação do ônibus na visão dos usuários.

SÉRGIO AVELLEDA – O Cláudio está completamente correto. As prefeituras, ao promoverem a eletrificação, precisam requalificar o sistema também. O ônibus elétrico, por si só, tem potencial de atrair mais passageiros, mas, por favor, não coloquem um ônibus elétrico parado num engarrafamento. Aproveitem a oportunidade, façam uma faixa exclusiva. Aproveitem a oportunidade e invistam em tecnologia. Requalifiquem o seu sistema para que o ônibus elétrico ande cheio e não vazio.

ANUÁRIO – E quanto ao necessário investimento das cidades em mobilidade ativa?

SÉRGIO AVELLEDA – Eu acho que nesse ponto, quanto às bicicletas, a gente vai indo bem. Eu acho que mais cidades se convenceram da necessidade de oferecer infraestrutura para esse tipo de veículo. Há muitas cidades fazendo ciclovias. São Paulo está liderando o processo, e conta já com 700 quilômetros de ciclovias. As resistências estão se reduzindo. Falo das resistências iniciais, que aconteceram aqui e aconteceram até na Holanda. É cultural. Quando se mexe no espaço do automóvel, sempre há uma reação. Mas eu vejo com bons olhos. Tanto é que, durante a pandemia, a venda de bicicletas explodiu. E eu acho que se as cidades continuarem ampliando a infraestrutura, nós vamos ter o crescimento do uso da bicicleta. O uso da bicicleta não acontece da noite para o dia. Você não faz uma ciclovia e no dia seguinte ela lota. A adoção da bicicleta se dá ao longo do tempo. Se as cidades forem fazendo as ciclovias, ampliando e conectando as ciclovias, contendo a velocidade no trânsito, as pessoas vão se sentindo mais seguras para pedalar. E quando as pessoas começam a pedalar – e eu posso falar isso porque está acontecendo comigo –, elas descobrem que a bicicleta é eficiente, muito mais barata, é saudável. E é segura quando há ciclovias. Então, é um meio de transporte, além de ser a máquina mais eficiente que o homem produziu.

ANUÁRIO – Há quem diga que a bicicleta é adversária do ônibus.

SÉRGIO AVELLEDA – A bicicleta não pode ser vista como um adversário do transporte público. Porque é uma aliada. Se a política cicloviária se integrar ao transporte público, as ciclovias serão pontos alimentadores do transporte público. Eu dou como exemplo a Estação Faria Lima, da Linha 4 – Amarela do metrô em São Paulo, onde tem estações de compartilhamento de bicicletas ao redor daquela estação. Assim, as pessoas chegam de metrô, pegam a bicicleta e vão para os seus escritórios. Isso pode se dar nos terminais de ônibus. A integração com o transporte público é importante porque dificilmente uma pessoa vai sair do Grajaú, no extremo sul da cidade de São Paulo, para ir de bicicleta até o bairro de Santana, na zona norte da cidade. Mas ela pode sair da casa dela, ir para o terminal de ônibus no Grajaú e entrar num ônibus para seguir a sua viagem. Então, políticas de integração vão criar um ambiente no qual se estabelecerá um ciclo virtuoso, em que a bicicleta vai alimentar o transporte público e vice-versa.

ANUÁRIO – Eu observo que a bicicleta vive um conflito com o pedestre. Como o senhor vê essa questão?

SÉRGIO AVELLEDA – Esse é um problema que as cidades enfrentam. Paris, hoje – eu estive lá no ano passado (2022), em reunião com a Secretaria de Transportes –, um dos grandes problemas que eles têm é o conflito entre bicicletas e pedestres, uma vez que incentivaram as bicicletas e lá há muitos ciclistas. Os dirigentes da área de transporte entendem que é natural esse conflito e que isso vai se acomodar ao longo do tempo. Eles vão atuar para fazer desenhos de engenharia das vias que favoreçam o respeito maior aos pedestres. Eu concordo com você. Eu pedalo muito na cidade e muitos colegas meus, como costumo dizer, “saem do carro, mas o carro não sai deles”. Continuam exercendo o poder através do veículo, mesmo sendo o veículo uma bicicleta, e não respeitam os pedestres. Mas esse é um processo de aculturamento pelo qual a gente vai ter que passar. Esse é o conflito que não mata. O conflito que mata continua existindo. Estou aqui na janela do meu apartamento, de onde vejo que tem duas faixas de pedestres e ninguém as respeita. O motorista brasileiro acha que a faixa de pedestre é um “monumento em homenagem às zebras”. Ninguém para na faixa. Esse é o conflito que mata. Esse é o conflito que me preocupa, o do carro com o pedestre. O conflito da bicicleta com o pedestre nós precisamos ajustar; precisamos ter mais campanhas, talvez, e algum tipo de orientação nas vias. Em São Paulo, a Companhia de Engenharia de Tráfego (CET) poderia estar nas vias orientando esses ciclistas a fazer com que haja esse respeito.

ANUÁRIO – Um último ponto: a questão das calçadas. De modo geral, elas são malcuidadas nas cidades brasileiras.

SÉRGIO AVELLEDA – Eu concordo plenamente com você. A gente vê as prefeituras gastando fortunas pavimentando as ruas para que o carro transite com muito conforto – lembrando que em São Paulo o carro só responde por 31% das viagens – e as calçadas, por onde são feitas 35% das viagens, são muito malcuidadas, fazendo com que muitas pessoas tenham dificuldade de locomoção. É preciso lembrar que a rede de calçadas faz parte do sistema de mobilidade. O sujeito não é usuário do transporte público quando ele chega no ponto de ônibus, ou quando ele embarca num ônibus. Ele se transforma em usuário do transporte público quando ele amarra o tênis em casa, quando ele sai para andar em direção ao ponto de ônibus. Então, se nós queremos valorizar o transporte público, nós precisamos valorizar as calçadas, porque elas fazem parte da rede de transporte público.

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